ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

naquele ponto

Pearblossom Hwy, 1986.  Por David Hockney 


Bateu no vidro da porta: "posso entrar por aqui?" Um par de olhos arregalados acompanhados do consentimento. O pagamento normalmente um transtorno. Verdadeiro boliche de gentes, não era difícil prever a perplexidade da coisa ao ver o oceano de cabeças mareadas. Ele mal podia posicionar-se no corredor sem abrir clareira imensa e os outros se pasmarem segredando em murmúrios cruéis reclamações. Ia desatento se o censuravam ou ralhavam, ia manobrando delicadamente um estopim de procedimento desatinado. Imponente. Abria caminho com mãos de Moisés. Algumas vezes um trocador mais sensível pressentia a tragédia, indo ele mesmo buscar a passagem, alheio talvez a desgraça ainda maior. Era como se largasse tudo de suas mãos. Em poucos segundos não tinha noção da gravidade dos acontecimentos. Apenas traçava uma reta desmedida, alcançava ligeiramente o enorme homem e voltava aliviado e aturdido do heroico feito. O suor exagerado escorrendo-lhe pelas extremidades da blusa azul e encharcando vagaroso as reentrâncias da calça de tecido grosso. O motorista espantado sentia um leve reclinar do veículo para o lado escolhido pelo enorme passageiro. Ele quando sentava, acomodava-se em dois bancos, desgarrado da parte sobressalente depositada no corredor.
Via tudo... Casas coloridas de pedras justapostas, prédios gigantescos com comércios enovelados e pessoas, muitas delas, de todo jeito de situação. Pensava se ninguém tinha real poder sobre elas. As pessoas do lá fora. Capazes de se locomover livremente a seu bel prazer. Invejava a astúcia daqueles seres caminhantes, mesmo que solitários, órfãos, encardidos, desajeitados, paranoicos, violentos, pobres, bêbados, medrosos... Podiam andar e repetir constantemente o passo.             
Olhou no vidro o reflexo dos passageiros da lotação que passava paralela ao lado oposto de sua janela. Espécie de projeção espectral sombria.

Confundia sobras nevoadas de árvores camelôs postes tonalidades de transeuntes com pessoas reais sofredoras trabalhadoras inseguras calejadas do trajeto desalmado do ônibus.

Desconfiava da magia de notar um ônibus idêntico ao seu passando do outro lado da estrada. Cena expressa em câmera lenta, caricato espelho, um lapso temporal que tornava a simultaneidade do encontro possível. Era como se fosse ao mesmo instante dois, indo e vindo, chegando e saindo, cortante e penoso; duplo.
Não queria ser dois. Não queria ser nem um. Sendo um já era dois, em qualquer ação cotidiana ocupava o lugar de dois, tamanha desproporção...
Odiava longuíssimas viagens, sempre algo vinha ferir-lhe a consciência. Os olhares denunciavam um sentimento de culpa carregado de desprezo. Pensavam: como conseguiu chegar a esse ponto? Mas a verdade era como conseguir não chegar a esse ponto? Diziam que era até novo, sem apetrechos, mas novo. E olhavam-no com aquele olhar funesto continuadamente. Encolhidinho o filhotinho abandonado.
Não queria pena, só queria paz; luz não treva!
Todos os pontos em que descia alguém, imaginava como seria viver ali em benefício de um mundo de possibilidades. Lembrava estórias que nunca vivera só para sentir um gostinho adocicado na boca... Memórias de flor, de calor, um transbordamento bom... Pôde até romper em riso ao recitar nova existência. Respirou fundo e sentiu o ar entrando preenchendo seu enorme corpo flácido. Percebeu que o vazio chama o cheio. A completude da metade que chama o inteiro.
 Ahhhh!(suspirou)
"Meu rapaz... deixa deixa posso resolver, já ouviu falar da dieta da Lua?
Voltou a si sorrateiramente com o tapa na cara. E mais uma bizarra dieta pé-ante-pé para sua infinita coleção.
"Não te perguntei nada, minha senhora. Obrigada e passar bem!" Desceu num ponto qualquer mais adiante carregando consigo entranhado no estômago todo o zelo de ser como é. O sorriso de ursinho carinhoso.    

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

sonhos brumos II


Mia Farrow em O Bebê de Rosemary de Roman Polanski, 1968.

Tchau amor! me liga..


Abriu a porta de madeira masciça arrastada naquele usual ruído estranho. A casa estava na penumbra, não deixavam mais as luzes acessas, queriam economizar. Ninguém outra vez. Era como se as irmãs não existissem mais. Nunca as encontrava e há tempos não se falavam nem ao telefone. Sem brigas nem desentendimentos, simplesmente não se falavam, como estranhas que dividem a mesma casa. A última vez foi no aniversário do primo, aquele esquisitinho e bobalhão que tem um monte de amigos.


Muito mais que eu! Não costumo cativar as pessoas, só cultivo plantas. Até mesmo minhas irmãs, mero decalque social. Na festa, nos beijamos e abraçamos lindamente como manda o decoro familiar. Na verdade, às vezes esqueço delas, temos horários muito diferentes. E quando estamos em casa, cada uma se tranca em seu próprio universo. A Celina sempre romântica, chorando com seus filmes e esperando um chamado de amor. Catarina descabelada vive escutando cada vez mais alto o rock 'n roll estridente que gosta, chama aquela merda de punk rock. Detesto! E eu, não sei o que deu na mamãe para me chamar de Criselda, parece nome de bruxa de conto de fadas... Porra de nome escroto! Se queria ser criativa e colocar todas as filhas com C, que fosse pesquisar num livro, sei lá... Aceitou o primeiro nome de ninguém que ouviu e ainda deve ter dito: " nossa nunca tinha ouvido, que diferente!" Era justamente o que um namoradinho gracinha que tive falava quando perguntava sobre meu nome; se era bonito e coisa e tal, ele falava igualzinho, só que com outras palavras bem parecidas. Tornei-me Cris, a sórdida; a com apavorante receio de ser Selda.

Andou em direção ao quarto e quando olhou para o chão, assustou-se com uma barata na reta da porta do banheiro. Fincou-lhe o pé com toda força, porque barata ou você mata de primeira ou prepara-se para uma corrida desvairada. A asquerosa nem se mexeu ao sentir a sombra da morte... já estava morta. Lembrou-se da barata que matou dois dias atrás numa corrida desvairada e esqueceu-se de jogar o cadáver no lixo. Gostava de digerir o assassinato antes de se livrar do corpinho. Ontem voltou para casa pensando em sua vítima, mas o animalzinho havia sumido.Sensação de alívio aterrorizado. Se é que se pode traduzir tal sentimento em palavras. Foi tomar banho, despiu-se. Ao abrir a cortina do box, lá estava ela, agonizando, as terríveis perninhas para cima. Vivenciou a cena de psicose às avessas. Morria de medo de barata, ainda mais sendo aquela um fantasma de barata... Pior! Era o seu maior pesadelo. Maior da vida! Enfrentar uma barata pelada no box. Ela e a barata. Imaginava o asqueroso inseto entrando lá... sensação úmida, suja, gosmenta... As irmãs... Celina nunca a mataria por pavor e Catarina por indiferença.

Tive receio de trucidá-la. A bicha morreu por si só dentro do vazio e úmido box. Morte indigna para o mundo das baratas. Morreria num azulejo branco e cheiroso. Estaria fadada ao limbo de sua espécie, distante para sempre dos abismos insustentáveis e imundos que lhe reconfortavam a alma de inseto marginal. Precisei sair. Antes, embolei três quilos de papel e joguei o corpo no lixo do banheiro. Desesperada com a possível ressurreição de perninhas serelepes roçando meus dedos indefesos. Feito... Mas agora, lá estava ela. Era ela. Ela. Olhei assombrada para a lixeira do banheiro e no chão... ao lado da lixeira... atrás da privada, o chumaço de três quilos de papel. Tive certeza de que era ela. Entretanto, dessa vez escorria uma substância espessa verde abacate do corpo desmantelado. Joguei de novo no lixo com mais quilos e quilos de papel.


6:02 marcava o rádio relógio. Ajustou o despertador para 8:30. Precisava falar com o chefe como se quisesse ir, e não pudesse. Nessas horas você tem sempre que ligar antes, senão dá muito na pinta. Vestiu um blusão e deitou-se (merda, duzentos reais negativos; olá Sr. Huguet, como vai? não queria ficar sozinha hoje, até puxaria assunto; aí! vai dormir, você só tem duas horas) Abriu os olhos e o relógio marcava 6:02. Resolveu pegar uma água para refrescar os pensamentos intrusos e acalmar-se.


Quando sai no corredor... lá estava a barata no mesmo lugar. Fiquei paralisada, olhando sem saber o que fazer. O ímpeto de pisar nela, a fez correr ligeira e no meio da sala transformar-se numa sombra de proporções imensas....
... sem ar... acordei, 6:02, estiquei o corpo para tentar enxergar o corredor da cama sem levantar. Não tinha nada, nem um nem outro. Tensa, observei atentamente o quarto e avistei em cima da estante um chumaço de papel higiênico, quase morri de medo, mas recordei a gripe da semana anterior. Precisava de uma água para relaxar. Sai do quarto na penumbra, tateando paredes para encontrar a luz da sala. O interruptor não funcionava, perecia queimada, sem ter dado nenhum estalo. Droga! Virei em direção ao quarto para voltar e acender a luz. Do escuro pude ver nitidamente um homem passando pela porta do meu quarto e acendendo a luz...
... acordei com muito medo, as pernas trêmulas, apertando sedenta o cobertor, suando frio. Nunca quis tanto que minhas irmãs chegassem. De olhos cerrados, forçando para abri-los. Não queria dormir de novo, queria ficar um pouco desperta. O cansaço apossava-se de todo meu corpo. Estava dopada de sono. Olhei o relógio, 7:02, que alívio! Agora sabia que não estava mais sonhando, era só medo mesmo, mal-estar resultante dos pesadelos. Há muito não sonhava. Precisava voltar com pesadelos? Será que fiquei impressionada com a barata imortal? Estiquei novamente o corpo para tentar ver o corredor, quando a visão estava quase alcançando o lugar de onde encontrei a barata... Dei um pulo espasmódico com o barulho da janela. O barulho indica que alguém está abrindo o portão. Ouvi também o som da chave forçando a fechadura. Felicíssima! Corri para a sala para retirar minha chave da porta, pois impediria a entrada da chave de minha irmã. Quando encostei a mão na chave. AAAAAH! Uma mão desconhecida segurou a minha através da porta...
Acordei esperneando batendo cabeça braços e pernas... 7:02, comecei a chorar descontroladamente soluçando e babando feito um bebê pirracento...


(Barulho do rádio relógio - escolher uma música) e ela acordou nervosa com o corpo enrijecido pelas lembranças, o gosto ácido na saliva. Os olhos arregalados avistaram 8:30. Levantou fingindo que nada tinha acontecido. Tomou uma água, ainda aturdida, tentando não pensar em nada, só no que diria a seu chefe, porque isso sim é que é real.

Alô! Sr. Huguet, como vai? Infelizmente hoje não poderei ir, é que

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Festa da Noiva Desdesposada

                                                                                                                                                                   

foto de Irina Ionesco 



Essa história foi uma velha que vende óculos na rua do Ouvidor que contou. Sabe a rua do Ouvidor? Fica no centro do Rio de Janeiro. Da barca que cruza a baía de Guanabara, você consegue pegá-la até o Saara. A velha fica numa dessas esquinas da vida, sentadinha com olhar perdido, como fosse uma cega, mas vende óculos.   
Disse que o ocorrido passou com a sobrinha da vizinha da encantador de cães da madame que era amiga e até meio-irmã da outra emergente, aquela que traiu o marido com o mágico que destratou o filhinho de um ano na festinha de aniversário, mágico grosso. Mas isso não vem ao causo. O importante aqui é a sobrinha. 
Era um casamento. A noiva estava se aprontando. Juntaram-se a ela várias mulheres; amigas irmãs tias primas mães avós enxeridas prestativas supersticiosas outras que ali passavam. Disputavam com unhas e dentes um pedacinho de noiva para enfeitar. Estavam nervosíssimas, verdadeiro pandemônio dentro da igreja . Como a velha mesmo disse: “ toda mulher guarda dentro de si o verme do desespero antes do casamento (alisava o ventre como se estivesse grávida)”.
Passado algum tempo, despontou dali a noiva... belíssima em seu olhar de noiva, o vestido de princesa, mangas bufantes, tules, rendas, transparência de sonho... o cabelo ornamentado de galhos e flores silvestres. Aaaaaaaaaaah! Primor de mãos amorosas. As mulheres suspiravam uma atrás da outra. 
A noiva inquieta. Sentia uma coceirinha sutil em diferentes pontos da cabeça, quentura, um estremecimento... “ai está coçando muito!”... "NÃÃÃÃO!"  Cada vez que a mão vacilante aproximava-se do penteado, as cabeleireiras, maquiadoras, massageadoras, animadoras, incentivadoras mulheres ficavam ensandecidas. Em coro: "Você não pode deixar o nervosismo estragar o seu dia. O dia."
A Tia avó falou: “coisinha é assim mesmo. Agora vai te dar de tudo. Dor de barriga, enxaqueca, de ombros, costas, virilha, queimação, tontura, pernas trêmulas e pálpebras ardentes. Mas não chora não, se não borra a maquiagem. Língua no céu da boca, vai... Eu sei como é isso. Já me casei seis vezes. Até hoje fico nervosa, uma loucura.”
Não escutava uma palavra! Como se em ínfimos intervalos de tempo lhe alfinetassem minúsculas agulhas agudas e quentes na cabeça. Em maresia apitava numa espécie de limbo. Alheia a qualquer psicologia da cerimônia. Começou a andar pesado, arrastando-se. Empurraram-na de soslaio no meio da igreja lotada. No tapete vermelho sangue ao som de violinos, violoncelos e vozes líricas, não haveria retorno. “Vai menina!” Sopraram ao fundo. Ela andava homeopaticamente penitente com uma ânsia inenarrável de arrancar tudo, penteado e roupa. Despir-se daquele desespero. Pungente e verdadeiro. Seria o prenúncio da dúvida? Não! Era corpóreo, visceral. Só ela o sentia, descontroladamente a vertigem tomava conta de seu corpo, a visão turva, pernas moles involuntárias...
Não! Amava aquele homem, tudo o que mais queria. Então o quê? Resgatou suas últimas forças e andou esbelta e alucinada todo o corredor de seu tormento e glória. Um passo após o outro, passo após... passo... entoava o mantra para conseguir vencer a estranha sensação. Por um momento desanuviou o espírito.... Logo o corpo enrijeceu desaliviado e só conseguia ver três imagens: o noivo, o padre e a cruz; noivo padre cruz, noivo padre cruz, noivo padre cruz... Quando finalmente chegou ao pé do altar, olhou para o noivo com olhos fundos de dor, olhou para o padre com olhos de clemência, olhou para a cruz... e caiu!
Foi um reboliço de parentes desconcertados e palpites intrometidos. “Ih! a noiva passou mal.” "E o casamento?" “Oba vamos direto pro birinight!” “Coitadinha! Tão jovem pra casar.”
Levaram a noiva para o hospital e no caminho, já estava morta. A festa da noiva morta, menina amante morta! A morte nada prematura foi descoberta no hospital. Primeiro, começaram a despir a noiva. O vestido de infinitos botões um a um, anágua, meia, sinta, nada.... A desfazer o penteado de galhos tortuosos e flores morta-vivas. O cabelo ia desfazendo-se lentamente... e com mechas pesadas a laquê... caiam lacraias gigantescas. Sete lacraias grotescas e insaciáveis dilacerando o couro cabeludo da noiva. As peçonhentas escorregavam pelo rosto. Agitadas pela luz fluorescente cavucavam furos profundos na pele. Proliferando em ninhos umidamente complexos na cabeça de madeira podre.
Escatológico e o verme do desespero antes do casamento cresceu ainda mais e as mulheres...
 É medo de lacraia



terça-feira, 4 de outubro de 2011

Os Aspones

Você viu aquele seriado, os aspones? Com Selton Melo.
Sei. Repartição pública
Olha... igualzinho! Era na rua da ajuda, uma ruinha no centro perto do castelo. O prédio meio velho, mal cuidado. Fui pegar o elevador. Quando entrei, a maquinista sei lá, era uma anã. Não por isso, mas estava naquela cadeira gigante com os pezinhos balançantes. Eu disse: décimo quarto, por favor. Ela apertou vários andares. O elevador subia até o dezessete. Mas lá pelo quinto andar, nossa primeira parada, saiu gente e tinha um senhor parado à porta. Ele perguntou: desce? Ela disse que sim. Nos entreolhamos estranhamente e seguimos. No oitavo, outros passageiros desceram e quando duas senhoras perguntaram: desce? a mulherzinha disse sim. No décimo, a torcida para baixo era bem maior e quando um senhor entrou perguntando se descia, as portas fecharam e o elevador começou a descer. Não sei porque aquilo me deu um acesso de riso que abafei com a mão sobre a boca. Eramos quatro sem conseguir alcançar o destino. Uma mulher meio alterada (nessas horas sempre tem um transbordamento) disse: oh! minha filha, o elevador estava subindo, eu tenho hora, não posso ficar passeando não. Achei mais engraçado ainda e saiu um esparro fugitivo tipo um sopro mal direcionado, a mulher me olhou com olhos fuzilantes. Lá pelas tantas, o elevador retomou a subida. Pensei se um dia ele voltaria ao chão, talvez não, porque na concepção daquela maquinista ele sobe e desce para sempre nesse movimento, nunca para. Acho que na concepção dos maquinistas do mundo inteiro é assim, a caixa de metal sobe e desce, nunca para, é a maneira mais próxima de iludir alguém ao céu. Teve até um momento que o elevador parou, não recordo em que andar, ela com a cabeça inclinada perguntou: desce ou sobe? Por ela, seria capaz de atender a todos os desígnios de caminhos traçados a um só tempo; do sobe e desce...
No andar, um corredor distante tomado por um roda meio de madeira maciça. Andei andei andei até alguém se compadecer: aonde vai? Para FDGR, não não, ABYG... (uma daquelas siglas esquisitas, que quiça não quer dizer nada ao certo). Entrei na sala, pessoas taciturnas comendo bolachas mareadas pelo som do ventilador de teto, artigo pré-histórico que compunha bem o lugar de nevoa sebosa. Pilhas de papel amarelado formavam pilastras gigantescas, alicerces na iminência de uma catástrofe nada prematura. Fiquei em pé algum tempo olhando invisível, nada interferiria na perfeita conformação daquela cena, entidades de cera cristalizadas pela matéria insolúvel do dia-a-dia. Questionaram-se entre si, quem é essa aí? Eu disse, sou estagiária, preciso de uma assinatura do Sr. Chefe de vocês. Questionaram-se entre si: quem é Sr. Chefe? Não sei, pode ser aquele que fica na sala ao lado. Ah é! Então vai lá. Vou não, ele é muito ignorante, vai você. Entrei na conversa: eu posso ir? Não! Nem pensar (suou uma gargalhada sarcástica da mais gordinha que mordia o canudo do guaravita fazendo transbordar gotículas na papelada deitada à mesa). Uma delas foi. Na verdade, suspeitei se nem ao menos chegou a ir. Foi tudo tão rápido, ela saiu pela porta e voltou. Como se tivesse parado o tempo, como se tudo no momento lhe pertencesse, o tempo estava a seu lado, tamanha a sutileza da parada imperceptível, quase espectral. Chegou e disse: deixe seu papel aí, ele está em reunião, depois assina. Olhei desconcertada aquelas pilastras de papel pensando se um dia, quando estiver bem velhinha, com os ossos fracos e as articulações perdendo a esperança, eu reencontraria aquele documento envelhecido, puído, sensível ao toque. Alguém diria ao tentar lê-lo com a pinça antes que desintegrasse em micropartículas brilhantes empoeirando a sala e atiçando alergias adormecidas, que ficou anos exposto ao sol ou mergulhado em limonada suíça ou até casado com um grilo não mais cantante na gaveta. Imaginei uma senhora distinta, porém carcumida pela culpa de saber a verdade, nunca recuperaria aquele papel, aquele maldito papel assombraria sua vida eternamente, fazendo-a mergulhar numa rede diabólica. Mal registraria o fato do serviço público ser assim mesmo; todo dia infinitos papéis perdem-se na vastidão de um universo com realidade desconhecida, incompreensível. Viveria peregrina esperando encontrar um novo sentido para sua fútil passagem pela existência, teria certeza, se tivesse recuperado aquele papel tudo seria diferente, obedeceria as exigências de si mesma, de alguém que vai e faz, capaz de conseguir uma assinatura, uma simples e ridícula assinatura, como pessoa, como cidadã, uma só assinatura, uma só uma e a burocracia vai...

terça-feira, 13 de setembro de 2011

sonhar é


o verme insalubre da insônia ataca novamente, as imensas garras envolvem as têmporas fazendo-as arder em prazer inenarrável, desfaz-se o véu das convenções noite-dia-dia-noite, quem possui a chave e seu segredo? a vigília para sempre sendo para sempre ela e só ela sempre para o corpo que clama por movimentar-se alheio ao mundo que dorme, alheio ao código impetuoso do sono, descrente da saúde como aliada do dia e divorciada da noite, noite bela, lua azul, corpo imóvel, cabeça intempestiva... olhos arregalados na escuridão do quarto, única luz, base fluorescente de prata do olho de gato, duas luas perdidas no espaço, temerosas pelo corpo inerte no casulo de edredom... as horas badalam badalam badalam o eterno-retorno do vício do tempo, e as chagas nunca morrem, não se vão, ficam, regurgitam sabedorias milenares, histórias que nunca deixam de ser contadas, histórias regentes da existência do mundo, histórias histórias histórias inventadas, seja uma lenda, um romance, uma saga, qualquer coisa esclarecendo o que no mundo circula e o é.

amanhece... uma nevoa densa cobre a plantação de ervas, lá, somente um homem bate um martelo, som que se aloja dentro de minha cabeça intempestiva, agora serena, crente de que o mundo não para, assim como o tempo, não qualquer tempo, mas aquele... aquele capaz de dizer ao corpo o quanto ele sofre com as frequências do lá fora, mesmo sonhando de braços cruzados com o de dentro

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

A lenda do pênis de lápis e da buceta mil folhas

Sex, 1992. Madonna and Steven Meisel


A rua era toda cinza sempre do mesmo jeito, olhares sorrateiros e dias passam...Os dias monótonos, e eu fui ao supermercado. Andava canalha, uma cortina densa, a bolha. Não enxergava nada, andava espantalho, boneco de títere. O diálogo com mãos estranhas e aveludadas me guiava, despia caminhos possíveis ou antes já vistos. Fantásticos. Um apê todo montadinho, sofá bem confortável, isso tem que ter. E churrasqueira. Porra é muito foda! A galera tomando umas cervejinhas... Ih caralho! Passou a entrada da loja.


Tenho certeza que tem alguma coisa a ver aquele porco, por que passou na minha frente de madrugada? - Você está surtada! O animal nem olhou para você. - Mas reparou minha presença, estava devorando faminto repolhos tomates alface cascas cascas madeira podre ossos ossos, quiça de gente, o banquete e ele sozinho insaciável. Quando passei, ele foi ficando nervoso endiabrado, continuava comendo desesperado, senti sua fúria, fiquei até com medo, alguma coisa vai acontecer, qualquer coisa de sendo.

Boa tarde. Ouvi esssa coisa de porcos eu adoro porcos. Hoje vai rolar uma cervejinha lá em casa. Talvez você... sua amiga, mais algumas amigas. Meu tio criava um porco muito bonitinho, um belo dia ele matou o animalzinho e depois chamava o bicho de Jesus dizendo que o porquinho era muito iluminado. Lembro do animal todo ensanguentado no chão, gritava igual gente. Atormentado por todos os tipo de pesadelos.


O quê?O foi foi? Estava ouvindo a nossa conversa? Desculpe, meu caro, eu te conheço? E o que está dizendo? acha que alguém da minha família vai morrer? Você está louco? Por quê? Os legumes do porco tem relação com minha aversão a comida? Por acaso eu vou morrer de inanição? Está louco? Acha que não dou conta da minha vida? Você tem alguma coisa a ver com esse porco? Eu já te vi antes não é? Eu te conheço... eu te conheço, foi você que passou outro dia na esquina perto da loja de macumba? Era quem falava aquelas coisa quando eu era criança?


Ela era fantástica. Só podia estar interpretando, nunca vi pensamentos tão rápidos. Já tinha a história toda em sua cabeça, e nós nunca... essa mulher! Quem será ela? Se mexe como uma louca desvairada. Deve ter um mundo de fantasmas nesse corpinho. Sou Luciano Incandescente, escrevo contos sobre horror caseiro. Não gostaria de conversar um pouco? Um bom vinho, conversaríamos sobre qualquer coisa, assim... o que vier na cabeça, que tal? Adorei conhecê-la, gostaria de explorar sua mente brilhante um pouco mais a fundo.


Fundo? Luciano Incandescente? Luz que queima? Coisa mais estranha? Chegamos no supermercado e? O quê? Nada? Meu nariz sangrou hoje de manhã e o seu? Acha que o clima está seco? Insuportável? Desprezível? Infantil?... Vamos amiga? (para a quietinha ao lado) Daqui a pouco vai dizer que quer nós duas? Que teríamos a experiência mais impressionante de nossas vidas? Que tudo mudaria em nosso mundo? Veriamos a completude.... ou o verdadeiro sentido da vida? Meus Deus? (para o cara)


Você já fez cinema? Talvez como atriz. Você é muito gata, mas não. Vamos pensar em histórias, como uma simples história, uma ficção inventada por você mesma poderia mudar o seu mundo, ou o mundo, ainda como um mundo menor dentro do seu. Seriamos ou seremos? Os dados estão a sua frente. Escolha o que de melhor enxerga. Adoro. Juntos encontraremos sim o nosso espelho. Nada mais há de funesto. Somente olhos dilacerados pelos braços que se entregam a mim na vontade de serem meus, nesse jogo de sedução incandescente, que no meu caso é em dobro. Hoje, só hoje. E vai saber.


Sempre ataca as mulheres no supermercado? Isso é uma prática sua? Veruska Ur..., volta aqui... Úrsula? Viu o que você fez? Todas são assim para você, né? Pensa igual a um garanhão adolescente? Imagino aquele menino playboyzinho, não era? Assim: sempre em cima daquela gostosa da rua, os seios aureolados, silhueta languida completamente rebolante, quando o broto descia a rua, requebrava feito um croqui de pin-up, a cintura alinhando os quadris perfeitamente. Você dopado, pois podia sentir de longe o cheiro do sexo dela. O núcleo da devassidão celestial. Quase não tinha cabeça, era apenas uma área pubiana independente de qualquer outra coisa que emergisse do espírito. Encontraram-se... festa? Viajem? Não, bem simples, os dois eram sonâmbulos e esbarraram-se na rua. (tom sarcástico) Tipo... dois sumbis, o que acha? Perfeito? Olhou para ela, ela olhou para ele. Uma gota de suor escorreu molhadinha pelos seios dela, era encorpada, ela também, mas a gota. Como eram sonâmbulos, quiseram fingir que sonhavam e foram até o chafariz no meio da praça, fornicando, se apertando angustiados pela ânsia de se reconhecer pelo toque. Caíram na água leves como pluma. As mãos dele percorriam o corpo dela escorregando no vestido e marcando a coxa com um vermelho de unhas. Ela dava gritinhos acariciando o pescoço dele. Tudo aquilo era possível, não passava de um sonho. Juntos cultivavam o álibi. Arrancaram roupas enlouquecidos, balançando a cabeça como se possuídos pelo demônio do prazer. O calor do corpo refrescava a água que num eterno retorno banhava-os imprudente. Ele abriu as pernas e desbravou o caminho do objeto de desejo. Estranhamente pensava em coisas como: existem extraterrestres? o que faria se ela fosse um deles e tivessem um filho? Pensava absurdos espetaculares e o pênis em riste, belicoso. Entrou numa viajem intergaláctica e viu o filho deles meio extraterrestre, meio demasiadamente-homem. Imerso nessa experiência bizarra dissociado de seu corpo que trepava faminto no ventre da moça. Então percebeu a possibilidade de provar se quisesse que alma e corpo podem se desligar do cérebro, eles não dependem do cérebro, entende isso? Entende a magnitude disso? Precisamos do cérebro pra tudo. A delícia, a penetração macia, desuniu pensamento e corpo. O homem irracional viu o sexo misturado com o amor, com algo que não nos pertence somente. Capaz de mover a tudo. Aquele corpo antes só corpo agora transformava-se numa coisa imensa quente e úmida. Nos múltiplos lábios, folhas e mais folhas de pele, o membro deslizava corajosamente, introduzido no frenesi das carícias de um tufinho de pentelhos. A mulher sentia o toque do pênis como fosse um lápis de ponta bem apontado. E aquilo lhe dava uma emoção intrigante. Reconheceu em si mesma a predisposição de remexer como nunca antes. Rebolava e rebolava. Redescobriu sua descendência de mulher da vida, de mulher primordial, sensitiva, sempre sendo. Todas as mulheres tem um lapso instintivo na intimidade. Estava preenchida, engravidada por uma energia voluptuosa, sem escrúpulos. Estágio evolutivo do prazer, do cosmos. O chafariz, o proibido, as mãos apertando os fluidos, tudo a fazia pensar nas maiores escatologias. Comia o órgão ereto do parceiro numa belíssima mesa de jantar com inúmeros modelos pelados em poses flexíveis. Imaginou que sugava o Incandescente para dentro de seu ventre e ele enlouquecido, rabiscava as paredes do útero, como se estas não servissem para nada, apenas para alojar um feto. Ela olha para si e vê nos braços feridas crescendo horripilantes. Lembravam cortes delicados a navalha. Iam aparecendo e formando um desenho. Palavras. Assombrada pelas palavras que brotavam de sua pele feito bordado em tecido, empurrou Luciano e correu, correu mais que as pernas pudessem aguentar. E o ginógrafo estatelado viu fugir sua fina estampa. A profecia profetizara-se. Nunca mais aquela história seria reescrita. A excitante lenda do pênis de lápis e da buceta mil folhas.

Enquadramento fabuloso!

quarta-feira, 27 de julho de 2011

é o mistério mais impressionante, maior no mundo, coisa mais fascinante, tesouro mais difícil de encontrar...


Essa é uma história que minha avó sempre me contava. Vou tentar contar como ela fazia: "minha filha, não tem mistério mais impressionante, maior no mundo, coisa mais fascinante, tesouro mais difícil de encontrar... do que um guarda-chuva. Essa história é boa pra dias de chuva... e pra dias sem chuva também, porque se a gente pensar, um guarda-chuva mesmo, não guarda a chuva, que, na verdade, sai pingando e escorrega por chão, não é mesmo?
Ele guarda é são outros segredos, enigmas indecifráveis... É que um guarda-chuva, você num fica com ele muito tempo não, né? Sê pode perder pelas ruas nas andanças por aí, pode esquecer no banco da lotação ou na casa de um amigo, que nunca devolve, por que isso, não é coisa de ser devolvida não. E quando abre mal aberto e o bicho se quebra todo? Tem jeito não, é muito estranho mesmo, na minha época não era assim essas coisas que num dura tempo.
Mas a história é a seguinte, você sabe o que é uma libinha? Sabe não? Nem nunca viu? Então eu vou te ensinar. Libinha é assim: sê estica bem uma das mãos, pode ser qualquer uma delas, a outra, junta o dedo maior com o dedo de colocar anel, tipo casando o simbolo da paz, sabe? Ai tu bate com os dedinhos assim fechadinhos aqui no meio da outra mão que está bem aberta... vê só que barulhinho bonitinho? Isso que é uma libinha. Agora... não pode parar não, fica fazendo a libinha ai, pra fazer o clima da história. Muito bem!
Um dia estava chovendo muito muito mesmo, uma chuva assim de espantar criança abusada e homem valente, uma chuva torrencial, mas parecia que tinham aberto uma cachoeira no céu. Estava andando apreçado, lá pros lado da pontezinha, um bicho assim, uma coisa grande... mais parecia uma mulher. Foi quando ela olhou... (cadê a libinha?) E avistou parado do lado da ponte... um... duvido alguém acerta o que ela achou... um guarda-chuva. Mas guarda-chuva não é coisa que se acha não, é mesmo muito perigoso achar uma coisa tão... é o mistério mais impressionante, maior no mundo, coisa mais fascinante, tesouro mais difícil de encontrar...
Quando ela abriu, o bicho se entortou todo pra cima e ela ficou com tipo uma bacia d'água em cima da cabeça, sabe? Bem que descobriu um jeito de guarda a chuva mesmo, né? Depois, ela tornou fechar e consertou o treco pra abri de novo, mas nessa hora... bateu uma rajada de vento, que nunca ninguém participou de coisa igual. A ventania formou um vendaval de vento que circulou a mulher feito uma mão gigante e saiu carregando ela pros quintos de sei lá onde... e ela coitada, levantou voo num instante. E cadê que soltava o guarda-chuva? Sem perceber que o troço ainda ajudava mais no rasante. E foi subindo subiu subindo... e sumiu nas nuvens negras da tempestade... foi com seu guarda-chuva, soltou não senhor. É que guarda-chuva, digo e repito, é mistério mais impressionante, maior no mundo, coisa mais fascinante, não é tesouro que se ache a-toá. Então minha filha, se um dia você vir um guarda-chuva dando sopa na rua.... se vira o olhar e faz que não viu, faz que não viu..."

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Symphony - Erick Oh


Floresta Negra de símbolos
a vida realizada por inteiro na sinfonia do cosmos
corpo imenso, intransponível
eles eram muitos
muitos são
tudo embaça o seu olhar e
andando e perpassando
quem sabe vive outra vez

terça-feira, 5 de julho de 2011

Templo dos sonhos


Empty Dream por Mariko Mori (recorte)

Problemas em atrasar o relógio? Posso garantir que isso só facilitaria

Última chamada para embarque na nave louca, nuvem cigana da Madame Tormenta Furtacor...
Para aqueles que acreditam no fim do mundo,
não se afobe não que nada é pra já, ainda há tempo de rever alguns conceitos e tramas mal fiadas por fiadeiras inexperientes.

"Je est un autre" (isso não é nada mau)

Em algum momento perdido acreditei ter passado reto pelo Templo dos Sonhos, mas logo descobri que ele é itinerante... então vamos juntos? encontrá-lo em varandas por aí... ver se desbravamos pradarias diversas, antes nunca exploradas, cheias de poesia e chocolate?

Meu rosto hoje reflete feito o espelho da alma células psicodélicas e também suaves em sua vastidão de vida interior para o mundo. O cosmos assemelha-se a elas e num balé fantástico saem bailando juntos, fluidos celestiais e células, homem e mundo.
Espreito o silêncio esperando a iluminação do rosto espelho alma, águas que vão e vem, águas que dominam meu corpo no cântico dos cânticos.

Vejo pessoas, milhares delas vestidas iguais, uma espécie de pronta-entrega do cotidiano, percebo que essas vestimentas castram qualquer suspiro criativo que possa existir em um ser naturalmente sensível. Uniformes coisificantes, máscaras malfadadas.

Eu nada entendo, assim como não entendo a estranha magia da palavra que clama por ser usada sem sentido aparente e desabrocha como uma flor e a cada momento desponta num imenso jardim imaginário. Templo dos Sonhos

sábado, 4 de junho de 2011

o velho, o menino estranho e o cachorro das rosas azuis

lay lady lay por Daya Gibeli


Aquele menino estava lá, o menino estranho, que ouvi dizer, disse que a praça era chata e sem vida. Aquele que vive pra cima e pra baixo de blusa vermelha e coturno, sempre com um vira-latinha cinza escuro.
Cachorro interessante... independente e cheio de si, parece entender da poesia da vida, da paciência que é boa de se ter diante do novo, das graças de experimentar a suspensão do pensamento... Os olhos do animal brilham indiferentes à descrença alheia, é esquálido, mas feliz. E todos os dias, pontualmente, observo o menino estranho correndo desconjuntado para o terreno baldio do outro lado da praça, o faz quase misterioso. Permaneço seco de curiosidade - pele e veias. Os passos largos do cachorro o fazem recuar velozmente quando chegam em um ponto no meio da escuridão. Repousam alguns minutos, imagino ser mais ou menos o mesmo lugar de toda noite. Fico pensando nisso antes de dormir, o pesadelo do breu, o que será? o quê?
Nas manhãs vou até o terreno baldio e tento procurar o que largaram na escuridão; invento, indago-me e quando olho o céu, lhe vejo me dizendo que estou um velho cheio de manias estranhas, tão estranhas como as do menino estranho. Então persisto ainda mais, abaixo, ajoelho no gramado, tento... depois, na hora de levantar, esse meu reumatismo quer me enferrujar, quase morro por dentro sofrendo a velhice de anos de sedentarismo e descaso de sair na rua. É! preferia contar as batidas do meu coração para ver se estava bem a cumprir as caminhadas repletas de sorrisinhos falsos que o doutor Garden recomendava que fizesse pela praça. "Doutor, antes só que mal parado."
As vezes vendo o menino e seu cachorro, me pergunto: "quando ficou assim, seu velho rabugento?" E não sei dizer, não me lembro, é que sou velho, solitário, tenho que pensar em tudo: a samambaia, o jornal, o ovo mexido, a novela, desarrumar e arrumar a cama, a samambaia, o jornal, o ovo mexido, a novela...
Ia muito à praça, aí desapeguei. Não vejo mais graça naquelas pessoas fingidas a animadinhas. Minha vida só acontece em casa. Melhor cuidar de mim, da minha saúde. Quando encontrar Josephina, tenho que estar bem para ela, tudo deve ser perfeito... espero isso há anos, não posso ficar percorrendo ruas à toa, minha missão é aguardar, a hora vai chegar.

Uma noite
Lá vai ele... o menino estranho que vive pra cima e pra baixo de blusa vermelha e coturno, sempre com um vira-latinha cinza escuro.
Eu vou eu vou eu vou,
lá fui eu, um velho patético lutando contra o reumatismo e a amargura de não ter o que fazer. Assombrado vi o cachorro fazendo xixi e o menino chorando com uma rosa azul na mão. Fiquei na penumbra vendo aquela estranha cena protagonizada pelo menino estranho e seu cachorro de olhos brilhantes... O menino abraçou fortemente o cachorro e ficou repetindo tristinho: "não vou te deixar foguetinho! "
Meus olhos também ficaram brilhantes de vontade de chorar. Não tem nada mais tocante que um menino estranho e seu cachorro...
Agora eu me lembro, eu gostava das pessoas, tinha muitos amigos e uma tarântula - a Crápulina...
tudo foi se esvaindo sorrateiramente...
depois que Josephina....
por quê?...
Fui chorando em bicas até o menino estranho que conversava com o cachorro, quando ele me viu ficou assustadiço e ameaçou correr, mas não correu, ficou parado me olhando e eu para ele. Permanecemos assim algum tempo, sem dizer nada, só olhando. Me reconheci naquele menino estranho, era como se estive olhando para mim mesmo, tive uma vaga lembrança daquela cena. Como eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. Agora eu já era uma coisa diferente. Ajoelhei-me, pus as mãos em seus ombros (o cachorro latiu) e olhando nos seus olhos perguntei: "por que meu jovem?... por que todos os dias vêm aqui? o que fazem? pelo amor de Deus, eu preciso saber!"
O menino fica pensando, e aborrecido responde: " Foguetinho faz cocô e xixi!... E agora? o que será dele? minha mãe quer se mudar e não quer mais ele. Disse que está velho e não vai aguentar a viagem... Eu sei! Mas só porque ele é velho, eu não posso deixar ele aqui! Ele é meu melhor amigo... Mas também não quero que ele morra, vai ficar sozinho, vai morrer muito triste!

Engoli um cuspe amargo enquanto olhava nos olhos brilhantes do cachorro, então me reconheci nele, não tenho a menor dúvida de que sou ele também. Perguntei pressionando os lábios: "Posso ficar com ele? Sou um velho sozinho e gostaria de ter um melhor amigo."
O menino olhou para o cachorro parecendo com coração apertado e muito dolorido. "Você vai chamar ele de foquetinho? Ele só atende assim." Sim, respondi. "Então... (o menino vira-se para o cachorro) você hoje achou um novo melhor amigo, Foguetinho, ele vai brincar das suas brincadeiras, vocês têm quase a mesma idade, eu te dou pra ele, porque ele é um velho muito bom e feliz", falou arranhando a garganta.
O menino fica olhando para o cachorro e se afasta, dando passos largos para trás. Quando está um pouco longe ele assobia, achei que era para o cachorro, mas era para mim. "Olha, você tem que vir aqui todos os dias, 09:09 da noite para o foguetinho fazer as coisas dele. Se não vier ele não faz de jeito nenhum, foguetinho só consegue se aliviar aqui no jardim das rosas azuis"

E foi assim que entendi o brilho nos olhos do foguetinho, ele tinha todas as noites antes de dormir tudo que ele mais sonhava: fazer xixi-cocô nas rosas azuis que tanto estimava. E que passei a amar também... meus deus, como estou sentimental.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

um dia no salão

Tina Turner Acid Queen - Tommy, the movie  

No interior do salão

Depiladora
Oi Thati, tudo bem? Você quer ser minha cobaia?


Thati
Hein? como assim?


Depiladora
Você tem braços tão bonitos e esbeltos... uma pele tão lisa... deixa eu ver sua veia?


A depiladora segura obsessivamente o braço direito de Thati

Depiladora
Hummm... é bem altinha.

Thati
O que é bem altinha? perâ ae...pô! não tô entendendo não, isso é algum tipo de..?


Olhares curiosos do cabeleireiro e da manicure debruçam sobre Thati. Cria-se no ar uma áurea de expectativa luxuriante. Todos fazem caras e bocas, de prazer, de assombro, sádicas.
A Depiladora fala puxando mais forte o braço direito de Thati. A Depiladora tem os olhos vermelhos esbugalhados, a profecia, a verdade seduzida. Thati também está com os olhos esbugalhados de medo, não é mais capaz de entender as formas do silêncio.
Todos ficam congelados. Quando Thati está quase cedendo inebriada pela bizarrice aguda... ouve uma voz sutil e angelical

Depiladora
É que estou aprendendo a tirar sangue.


Thati
NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOOOO (grito desesperado comum a filme de sessão da tarde)

sábado, 30 de abril de 2011

verdade para além-verdade


Vernoqueda por Daya Gibeli



Era uma princesa. Não era dessa vez tão bela assim. Estava lavando roupa na boca do rio. As mãozinhas dentro d'água... 
O corpo sem cálculo de pensamentos. O rosto figurava um nada angelical.
Foi quando de repente impunemente subitamente desesperadamente...
do pai-de-todos lhe foi usurpado seu anel inoxidável.
Ela, desesperada, inventou falsas verdades, épicos mirabolantes, tudo para satisfazer-se a si mesma... princesa decadente... e a seu pai... um homem mau!  
Já o anel fora comido por um peixe, que enojado com o gosto apedrejante, cuspiu-o na terra em belíssimo voo flutuante. Voo de peixe, guelras de peixe, olho de peixe...
Sementes de maçã germinavam naquela terra. E a seiva madrepérola da árvore ressuscitou o anel, que floresceu e alojou-se num fruto, o mais pomposo e suculento fruto... o mais vermelho!

Algum tempo... 

E um príncipe estrondoso estava a fazer cooper ao lado de seu cavalinho pela região. Encantou-se com o maravilhoso pomar. Nunca vira coisa mais encantadora de minuciosidades...  Para saciar a fome que o arrematou pelo olhar. Arrancou um fruto... pomposo e suculento... o mais vermelho! 
Ajeitou-se e mordeu a carnuda maçã.
Poow! Quase perdeu o dente, mas encontrou o anel.
Subitamente pensou – como príncipe estrondoso que era -: "pelas barbas del rei... com este anel... poderia morder as maças de uma donzela"



quarta-feira, 27 de abril de 2011

Fotógrafa Irina Ionesco

A mulher aranha tinha toda a verdade de si nos seus olhos, repletos de teias inundadas de palavras e sonhos... espera ávida a chegada do amor que nunca chega. Deita e curva-se. O ventre, vísceras pungentes, pronto a devorar, de geração em geração, chaves que não serviriam para abrir suas portas. Era interrogada sentada numa cadeira, com os olhos vendados, sussurrava:
- Escute o beijo dos grandes lábios
Masturbava-se acariciando o couro cabeludo e as plumas, grito selvagem, infâmia. Era muito mais misteriosa, guardava o néctar divino cheia de si e de seus olhos, bastava-se. Os dedos conhecedores de todos os segredos, deliciavam-na de paixão e gozo. A língua molhava os lábios sedentos pela ardência do amor irreversível.

terça-feira, 26 de abril de 2011

menino que tem a rua toda para si


Meninos de rua por Eduardo Dias Gontijo

os olhos do menino de expressão fugidia
diziam algo que eu não entendo
entre carros ferozes, vielas desmedidas, sinais quebrados, radares eficazes, vidros fumê, pontes de plataformas enferrujadas, cabeças cabeças cabeças cabeças ................................. tudo fica como está, quem sabe?
pernas caniços marcadas com as chagas da vida do menino que já nasce homem
desperta distante da terra do sonho, da pipa, do algodão doce, do carrossel
conhece o isopor, a pele, os gritos desaforados, o troco do dinheiro pingado, a ignorância alheia
tem dia que o craque, o engolir fumaça e desgraça, cola, o dormir na vala, a falta de tempo e identidade, o murro na cara, sopa de pedra, fedor, solvente, fraqueza 
a feição não muda queimada de fome e de sol, sol carrasco, olho do cão, encontro com o diabo, com a sobrevida, com o dia após dia que o obriga a encher barriga e esquecer a bola, a pipa, o algodão doce, a travessura
obriga a viver ali para sempre, menino expressivo, o rosto bem marcado, pele enrugada por dez, 10 anos de sofrimento
menino que já nasce para morrer, menino de rua

sábado, 9 de abril de 2011

o louco acha que é são, mas eu sou louco

(Ferragens de um automóvel dando a luz a um cavalo cego comendo um telefone - Salvador Dali/1938 )



Madruga
um animal imenso passa desapercebido diante de meus olhos
desmaia suas asas sobre mim
escravizando-me etéreo e transtornado
Tenho medo de fechar as pálpebras e adormecer
encontrá-lo repartido numa obscuridade gelada e suas medusas
Incompreendido
como uma pena dançando sozinha
delirante flutuando na folha branca
Sem limites
uma gota azul-petróleo debruça seu encanto molhado, indissolúvel e cheio de vida
traços despreocupados de quem não almeja a perfeição; ela não há
livre de realidades criadas por apertos de mão
monstruosamente alucinado pelo mundo dos sonhos, amante da ilusão
Surrealismo de Dali
Palavras suavemente cortantes de Lorca
janelas abertas para o mundo, um mundo gigantesco
lá onde tudo pode, lá onde seres fantásticos sobrevivem aos maiores sacrifícios
Primazia do Éden
música música música... para a alma

quinta-feira, 7 de abril de 2011

o gosto salgado do mar de lágrimas banhado em sangue

criança e o sentimento de não estar totalmente. não sabia dizer, só sabia calar. a vida um não-lugar, e por nada ter, não tem nem mesmo recordações, nenhum projeto. perdido no umbral do deslocamento do sujeito. o ensimesmamento, o gesto de curvar-se sobre si mesmo, o rígido corpo um cilindro jogado no vácuo, flutuando sem oxigênio, sem pensar no ontem nem no amanhã, definhando.

crendo em deus, concentrando a fé em seu deus, postura atônita e absorta, toda a energia idólatra delirante revertia-se em uma vontade, o ruído de uma voz quase imperceptível vinda do de dentro: "vá pegar eles!" estágio máximo e enfurecido do transe - mórbido mantra.

ele levanta decidido e extravagante e vai... vai predestinado a cumprir sua resignação, move-se lentamente, irreversível.
"sim! as virgens me dariam o banho prometido."
conseguiria limpar o nome que há tanto não lhe pertencia. nos meandros de um labirinto escolheu suas musas uma a uma, as guardiãs do paraíso... o caminho. nele, seria pleno. o presente feroz e crônico que se realiza no futuro. o último círculo. acordaria do sono da morte e iria para a vida.

a escola, duas armas, 32 e 38, a chuva de balas... e ele é visto rindo... ele que nunca é visto rindo, mas desta vez, era deus, soberano de tudo sobre todos e acima de todas as coisas. era o seu deus. estava possuído, em sua força nada o ameaçava... foram dez virgens, escolhidas friamente. matou também um garoto, todos mortos com tiros na cabeça ou no peito. gozava a sensação narcótica da vingança, o sabor de ter tudo nas mãos. obscuro numa espécie de bolha era ignorante ao grito aterrorizado das crianças.

quando os policiais chegaram foi tocado por uma sensação muito estranha, quente, leprosa, olhou em volta e percebeu e sentiu pânico de ser quem era. teve medo de seu destino, correu atirou atirou atirou. dois tiros acertaram seu peito, caiu no chão e foi se arrastando para um canto da escada, achou um vidro que dava para ver seu rosto, estava podre, vermes brotavam dos olhos e lhe corroíam a pele em decomposição

diabo diabo diabo... enfiou a arma em diagonal no céu da boca e pá...
encontrou a si mesmo


Quinta-feira, 7 de abril, logo cedo. Escrevi esse texto para nunca mais esquecer... doentio e cortante

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Coreto de Piranga


Quilômetros de estrada e curvas perigosas. Dois desvios cheios de medo; o carro derraparia no menor movimento vacilante. Casinhas coloridas brotavam uma a uma numa rua de losangos empedrados. Sobe e desce de morros estreitos e famílias sentadas na soleira. Chegamos numa praça florescida por lírios, o despertar de seu lirismo; palmeiras imperiais, a fascinante supremacia, e pessoas dispersas em bancos bem colocados. Estendidas no umbral do presente. O coreto, no centro, tinha uma arquitetura delicada. Fora construído minusiosamente por mãos atentas à ciência ancestral, mãos que pincelaram ora a limpidez do branco, ora o ocre cor de carne, simbologia da relação da cor vermelha com o princípio ainda sobrevivente.
Pequenos pedaços de sons preenchiam os espaços vazios e pensamentos distraídos. As notas vinham distantes, de bumbos, cuícas, tambores e chocalhos - veludo para os ouvidos. A inusitada música caminhava, chegando de várias direções. Desciam crianças tocadoras de todas as ruazinhas estreitas direto para a praça central. A fabulosa banda de carnaval era a gêneses do novo. O mais velho integrante, o mestre de bateria, tinha uns quinze anos, talvez menos. Reciclavam marchinhas de Adoniran, Ari Barroso, Chiquinha Gonzaga...
O coreto celeste milagrosamente abria caminho "Ó ABRE ALAS QUE EU QUERO PASSAR..." as pessoas eram tocadas pela música e sorrisos orquestrados no ar feito estrelas iluminando o crepúsculo, as crianças vinham como anjos trazendo na harmonia a felicidade da cidade pintalgada de corações acesos.


segunda-feira, 4 de abril de 2011

A Praça XV em construção











Que droga é essa?

Outro dia entrei no 100(ônibus; Niterói - Praça XV), que diga-se de passageira, é sempre um acontecimento. Era madrugada, nebulosa e fria... na realidade, nebulosa e bêbada. Foi sábado de carnaval, entende? Na ocasião eu era a sininho. Estavamos eu e Peter voltando da terra do nunca, quando entraram no ônibus uns 20 caras, sabe essas pessoas animadas que andam em bando? Então! A galera sentou-se atrás da gente. Falavam merdas e mais merdas: coliformios festais; a bunda tocou só música irada; o mundo seria melhor se fosse feito só de mulher; se afoda seu arrombado; o cara malha e tá com o bipedes manerão... entre outras que desistimos para não ficarmos menos inteligentes, vai que pega, né?
A melhor de todas disparada, vencedora do podium universal intergalático, foi quando o cara disse: tem uma parada gringa aqui pra gente!
Pensei logo no pior. Ih! vão fuma um baseado ou cheira uma cocaína, vai saber? É carnaval...
Eu e Peter olhamos de rabo de olho e vimos uma embalagem quadrada de plático azul quase piscina, o que seria?...
Ai mermão, pega um ai! Mas só um, essa parada é cara, é negócio do bom.
Tentamos olhar discretamente, como quem nada quer. Notei um deles desembrulhando um plastiquinho transparente. Dentro tinha uma coisa estranhíssima, parecia um chiclete de um laranja neon. E diziam cada um a seu tempo: isso é bom pra caralho! Cara, onde cê arrumo isso? melhor parada! maior onda!
Ficamos muito curiosos, curiosíssimos e bota curiosos nisso...
A ponto de rasgar a pele, arrancar os cabelos, fazer uma reza ao santo das causas bizarras, estragar a fantasia... até que... finalmente... um dois coleguinhas perguntou: mas que droga é essa?
Isso é tipo um peixe, sei lá... se chama Kani, é japa!

quarta-feira, 23 de março de 2011

o fazendeiro de dentes só fornece para fadas madrastinhas


Meu sobrinho apareceu sem uns cinco dentes na boca (é! também não dava pra ser em outro lugar, neh? Não iam ser de alho ou de pente)

Que é isso menino?

Ele me contou que tinha sonhado com a fada do dente. Achei meio estranho aquilo.

Tia, minha mãe disse um dia que meu dente caiu, que se eu colocasse ele pra fada do dente, ela me dava uma nota de um real. Ai eu falei: mas mãe, não tem mais nota de um real. Então ela deve dar de dois. Ai fui dormir... caraca, dois real por um dente podre... Quando a fada veio, quis dar o dente pra ela, mas ela disse que só tinha uma nota de dez, perguntou se eu tinha troco. Falei que não. Ai ela disse: você quer adiantar uns dentinhos? Quanto eu ganho? A nota toda...

(contou nos dedos) Claro! Dez real!

Acordei quando cai da beliche.

quarta-feira, 2 de março de 2011


na estrada cabelos ao vento diluviando as possibilidades da noite. estrelas gotejam umidamente nostálgicas... Te quiero!! soam castanholas atrevidas nas mãos da estupenda bailarina flamenca!! porque sou ciganaaa aaah...
uma mulher de amor rasgado perseguida pela inquisição

domingo, 20 de fevereiro de 2011

a lenda do prédio verde-meleca. Porque o E.T não morreu!


Boa noite, telespectadores!

São 00:10.
Estamos aqui na rodoviária de Conselheiro Lafaiete, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Daqui podemos ver em primeiro plano, o prédio mais famoso da cidade.
Há muitos anos atrás, conta a lenda, que esse prédio fora abduzido por extraterrestres não identificados. O prédio de treze andares sumiu inexplicavelmente por algumas horas. Pesquisadores de diferentes áreas e ufólogos do mundo inteiro tentaram decifrar o mistério, mas até hoje, nada foi descoberto.
A lenda do prédio verde-meleca perpetuou-se devido a marca deixada pelos visitantes do espaço. Uma linha de plasma intergalático, verde-meleca, corta o prédio inteiro do chão até a superfície. Realmente um fenomeno bizarro que atrai turistas do mundo inteiro.
(música do arquivo X para fechar a matéria)

Entrevista com o síndico do prédio (em vídeo no youtube):

Revista Plutão Para Sempre
O Senhor já notou alguma coisa estranha no prédio?

Síndico que não quis se identificar

Uma vez um garoto quebrou toda a portaria com um martelo. Estava muito nervoso.

RPPS

Isso teve alguma coisa a ver com o prédio ter sido abduzido?

Síndico que não quis se identificar
Quando aconteceu, todo mundo ficou com muito medo, medo mesmo. As pessoas do prédio achavam que tinha alguma coisa sim. Porque quase todo mundo já morava quando o prédio foi levado pro outro planeta, mas ninguém sentiu nada. Aí, na outra noite, a listra verde-meleca já estava no prédio, assim de repente, do nada, como mágica de mágico... e o menino; depois a gente soube que não foi nada disso não.

RPPS
Descobriram o que foi?

Síndico que não quis se identificar
Sim.

RPPS

O que?

Síndico que não quis se identificar

Não sei se pode falar aqui não.


RPPS

Pode sim, materemos total sigilo tanto para o senhor como para o menino.


Síndico que não quis se identificar
Ah sim! Ele acordou de noite com muita vontade de ir no banheiro. Quando entrou no banheiro, que estava escuro, sua avó já estava fazendo as coisas lá, sabe? O menino ficou doido, garrou o martelo e desceu de cueca mesmo. Ele quebrou umas coisas da portaria, já que o porteiro ficava trancado no quartinho dele de madrugada. O porteiro, Zé, tem um namorinho com a Dona Terezinha, mas ninguém pode saber, porque ela é casada com Seu Tomás... mesmo assim todo mundo já sabe. Ela é muito boa com Zé, leva almoço todo dia, docinhos, um monte de mimos...

RPPS
Obrigada Senhor síndico, o senhor ajudou muito mesmo. (o repórter foi embora perplexo e cheio de histórias para contar)


sábado, 19 de fevereiro de 2011

chá de Alice



olhar distante procurando uma coisa que não reconheciamos, tentava me comunicar falando alto, cutucando os braços, fazendo firulas, movimentos bruscos... mas os olhos não eram ele; o corpo de faquir, a pele ressequida, olhos sem brilho, apáticos, buscando brilho em um canto suspenso do quarto

segui a direção de sua visão quase infantil, não era nada, para mim, apenas um teto contornado por um cano verde de oxigênio e outro amarelo de ar comprimido, e mesmo assim parecia haver alguma coisa

imaginei que aquilo que tanto o entretia não vivia no canto suspenso do quarto, era coisa do de dentro; mergulho profundo no oceano de si mesmo, lugares antes nunca visitados, ignorados pela correria do dia-a-dia imperador, o tempo engolidor de corpos

labiríntico, o agora se faz agora

o marasmo medroso de reconhecer a criatura moradora daquela Casa que é sua... onde foi que perdeu o referencial de si mesmo? será que um dia soube por poucos segundos o que realmente foi? e pra quê?

a respiração ofegante inchando o peito pontiagudo por ossos cansados de tentar, o pulmão angustiado de saber que essa luta não é mais dele.... mas existe o outro, aquele que sofre, o carcereiro que deseja a permanência; a consciência então clama por ações do ator peregrino em terra árida, deserto imenso, monólogo sem pláteia

os aparelhos representam um humano demasiadamente humano, alheio à vã filosofia da vida, que se esvaindo assume proporções, conformações semelhantes para todas as criaturas do mundo... deixam de existir características singulares, quebram-se os paradigmas, há transgressão das regras e leis, uma nova perspectiva dos valores; todos somos um

sensação de formigamento, coceira como se milhões de insetos invisíveis caminhassem sobre a pele impunemente, a boca sempre aberta denunciando a respiração quase desesperada, não fosse o ritmo lento e desregrado

da janela, palmeiras imperiais gigantescas, robustas, agrediam com sua imponência de viver; sentia-me cada vez menor menor menor menorzinha
ínfima... achei ter bebido o líquido denso de Alice