ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

naquele ponto

Pearblossom Hwy, 1986.  Por David Hockney 


Bateu no vidro da porta: "posso entrar por aqui?" Um par de olhos arregalados acompanhados do consentimento. O pagamento normalmente um transtorno. Verdadeiro boliche de gentes, não era difícil prever a perplexidade da coisa ao ver o oceano de cabeças mareadas. Ele mal podia posicionar-se no corredor sem abrir clareira imensa e os outros se pasmarem segredando em murmúrios cruéis reclamações. Ia desatento se o censuravam ou ralhavam, ia manobrando delicadamente um estopim de procedimento desatinado. Imponente. Abria caminho com mãos de Moisés. Algumas vezes um trocador mais sensível pressentia a tragédia, indo ele mesmo buscar a passagem, alheio talvez a desgraça ainda maior. Era como se largasse tudo de suas mãos. Em poucos segundos não tinha noção da gravidade dos acontecimentos. Apenas traçava uma reta desmedida, alcançava ligeiramente o enorme homem e voltava aliviado e aturdido do heroico feito. O suor exagerado escorrendo-lhe pelas extremidades da blusa azul e encharcando vagaroso as reentrâncias da calça de tecido grosso. O motorista espantado sentia um leve reclinar do veículo para o lado escolhido pelo enorme passageiro. Ele quando sentava, acomodava-se em dois bancos, desgarrado da parte sobressalente depositada no corredor.
Via tudo... Casas coloridas de pedras justapostas, prédios gigantescos com comércios enovelados e pessoas, muitas delas, de todo jeito de situação. Pensava se ninguém tinha real poder sobre elas. As pessoas do lá fora. Capazes de se locomover livremente a seu bel prazer. Invejava a astúcia daqueles seres caminhantes, mesmo que solitários, órfãos, encardidos, desajeitados, paranoicos, violentos, pobres, bêbados, medrosos... Podiam andar e repetir constantemente o passo.             
Olhou no vidro o reflexo dos passageiros da lotação que passava paralela ao lado oposto de sua janela. Espécie de projeção espectral sombria.

Confundia sobras nevoadas de árvores camelôs postes tonalidades de transeuntes com pessoas reais sofredoras trabalhadoras inseguras calejadas do trajeto desalmado do ônibus.

Desconfiava da magia de notar um ônibus idêntico ao seu passando do outro lado da estrada. Cena expressa em câmera lenta, caricato espelho, um lapso temporal que tornava a simultaneidade do encontro possível. Era como se fosse ao mesmo instante dois, indo e vindo, chegando e saindo, cortante e penoso; duplo.
Não queria ser dois. Não queria ser nem um. Sendo um já era dois, em qualquer ação cotidiana ocupava o lugar de dois, tamanha desproporção...
Odiava longuíssimas viagens, sempre algo vinha ferir-lhe a consciência. Os olhares denunciavam um sentimento de culpa carregado de desprezo. Pensavam: como conseguiu chegar a esse ponto? Mas a verdade era como conseguir não chegar a esse ponto? Diziam que era até novo, sem apetrechos, mas novo. E olhavam-no com aquele olhar funesto continuadamente. Encolhidinho o filhotinho abandonado.
Não queria pena, só queria paz; luz não treva!
Todos os pontos em que descia alguém, imaginava como seria viver ali em benefício de um mundo de possibilidades. Lembrava estórias que nunca vivera só para sentir um gostinho adocicado na boca... Memórias de flor, de calor, um transbordamento bom... Pôde até romper em riso ao recitar nova existência. Respirou fundo e sentiu o ar entrando preenchendo seu enorme corpo flácido. Percebeu que o vazio chama o cheio. A completude da metade que chama o inteiro.
 Ahhhh!(suspirou)
"Meu rapaz... deixa deixa posso resolver, já ouviu falar da dieta da Lua?
Voltou a si sorrateiramente com o tapa na cara. E mais uma bizarra dieta pé-ante-pé para sua infinita coleção.
"Não te perguntei nada, minha senhora. Obrigada e passar bem!" Desceu num ponto qualquer mais adiante carregando consigo entranhado no estômago todo o zelo de ser como é. O sorriso de ursinho carinhoso.