Mia Farrow em O Bebê de Rosemary de Roman Polanski, 1968.
Tchau amor! me liga..
Abriu a porta de madeira masciça arrastada naquele usual ruído estranho. A casa estava na penumbra, não deixavam mais as luzes acessas, queriam economizar. Ninguém outra vez. Era como se as irmãs não existissem mais. Nunca as encontrava e há tempos não se falavam nem ao telefone. Sem brigas nem desentendimentos, simplesmente não se falavam, como estranhas que dividem a mesma casa. A última vez foi no aniversário do primo, aquele esquisitinho e bobalhão que tem um monte de amigos.
Muito mais que eu! Não costumo cativar as pessoas, só cultivo plantas. Até mesmo minhas irmãs, mero decalque social. Na festa, nos beijamos e abraçamos lindamente como manda o decoro familiar. Na verdade, às vezes esqueço delas, temos horários muito diferentes. E quando estamos em casa, cada uma se tranca em seu próprio universo. A Celina sempre romântica, chorando com seus filmes e esperando um chamado de amor. Catarina descabelada vive escutando cada vez mais alto o rock 'n roll estridente que gosta, chama aquela merda de punk rock. Detesto! E eu, não sei o que deu na mamãe para me chamar de Criselda, parece nome de bruxa de conto de fadas... Porra de nome escroto! Se queria ser criativa e colocar todas as filhas com C, que fosse pesquisar num livro, sei lá... Aceitou o primeiro nome de ninguém que ouviu e ainda deve ter dito: " nossa nunca tinha ouvido, que diferente!" Era justamente o que um namoradinho gracinha que tive falava quando perguntava sobre meu nome; se era bonito e coisa e tal, ele falava igualzinho, só que com outras palavras bem parecidas. Tornei-me Cris, a sórdida; a com apavorante receio de ser Selda.
Andou em direção ao quarto e quando olhou para o chão, assustou-se com uma barata na reta da porta do banheiro. Fincou-lhe o pé com toda força, porque barata ou você mata de primeira ou prepara-se para uma corrida desvairada. A asquerosa nem se mexeu ao sentir a sombra da morte... já estava morta. Lembrou-se da barata que matou dois dias atrás numa corrida desvairada e esqueceu-se de jogar o cadáver no lixo. Gostava de digerir o assassinato antes de se livrar do corpinho. Ontem voltou para casa pensando em sua vítima, mas o animalzinho havia sumido.Sensação de alívio aterrorizado. Se é que se pode traduzir tal sentimento em palavras. Foi tomar banho, despiu-se. Ao abrir a cortina do box, lá estava ela, agonizando, as terríveis perninhas para cima. Vivenciou a cena de psicose às avessas. Morria de medo de barata, ainda mais sendo aquela um fantasma de barata... Pior! Era o seu maior pesadelo. Maior da vida! Enfrentar uma barata pelada no box. Ela e a barata. Imaginava o asqueroso inseto entrando lá... sensação úmida, suja, gosmenta... As irmãs... Celina nunca a mataria por pavor e Catarina por indiferença.
Tive receio de trucidá-la. A bicha morreu por si só dentro do vazio e úmido box. Morte indigna para o mundo das baratas. Morreria num azulejo branco e cheiroso. Estaria fadada ao limbo de sua espécie, distante para sempre dos abismos insustentáveis e imundos que lhe reconfortavam a alma de inseto marginal. Precisei sair. Antes, embolei três quilos de papel e joguei o corpo no lixo do banheiro. Desesperada com a possível ressurreição de perninhas serelepes roçando meus dedos indefesos. Feito... Mas agora, lá estava ela. Era ela. Ela. Olhei assombrada para a lixeira do banheiro e no chão... ao lado da lixeira... atrás da privada, o chumaço de três quilos de papel. Tive certeza de que era ela. Entretanto, dessa vez escorria uma substância espessa verde abacate do corpo desmantelado. Joguei de novo no lixo com mais quilos e quilos de papel.
6:02 marcava o rádio relógio. Ajustou o despertador para 8:30. Precisava falar com o chefe como se quisesse ir, e não pudesse. Nessas horas você tem sempre que ligar antes, senão dá muito na pinta. Vestiu um blusão e deitou-se (merda, duzentos reais negativos; olá Sr. Huguet, como vai? não queria ficar sozinha hoje, até puxaria assunto; aí! vai dormir, você só tem duas horas) Abriu os olhos e o relógio marcava 6:02. Resolveu pegar uma água para refrescar os pensamentos intrusos e acalmar-se.
Quando sai no corredor... lá estava a barata no mesmo lugar. Fiquei paralisada, olhando sem saber o que fazer. O ímpeto de pisar nela, a fez correr ligeira e no meio da sala transformar-se numa sombra de proporções imensas....
... sem ar... acordei, 6:02, estiquei o corpo para tentar enxergar o corredor da cama sem levantar. Não tinha nada, nem um nem outro. Tensa, observei atentamente o quarto e avistei em cima da estante um chumaço de papel higiênico, quase morri de medo, mas recordei a gripe da semana anterior. Precisava de uma água para relaxar. Sai do quarto na penumbra, tateando paredes para encontrar a luz da sala. O interruptor não funcionava, perecia queimada, sem ter dado nenhum estalo. Droga! Virei em direção ao quarto para voltar e acender a luz. Do escuro pude ver nitidamente um homem passando pela porta do meu quarto e acendendo a luz...
... acordei com muito medo, as pernas trêmulas, apertando sedenta o cobertor, suando frio. Nunca quis tanto que minhas irmãs chegassem. De olhos cerrados, forçando para abri-los. Não queria dormir de novo, queria ficar um pouco desperta. O cansaço apossava-se de todo meu corpo. Estava dopada de sono. Olhei o relógio, 7:02, que alívio! Agora sabia que não estava mais sonhando, era só medo mesmo, mal-estar resultante dos pesadelos. Há muito não sonhava. Precisava voltar com pesadelos? Será que fiquei impressionada com a barata imortal? Estiquei novamente o corpo para tentar ver o corredor, quando a visão estava quase alcançando o lugar de onde encontrei a barata... Dei um pulo espasmódico com o barulho da janela. O barulho indica que alguém está abrindo o portão. Ouvi também o som da chave forçando a fechadura. Felicíssima! Corri para a sala para retirar minha chave da porta, pois impediria a entrada da chave de minha irmã. Quando encostei a mão na chave. AAAAAH! Uma mão desconhecida segurou a minha através da porta...
Acordei esperneando batendo cabeça braços e pernas... 7:02, comecei a chorar descontroladamente soluçando e babando feito um bebê pirracento...
(Barulho do rádio relógio - escolher uma música) e ela acordou nervosa com o corpo enrijecido pelas lembranças, o gosto ácido na saliva. Os olhos arregalados avistaram 8:30. Levantou fingindo que nada tinha acontecido. Tomou uma água, ainda aturdida, tentando não pensar em nada, só no que diria a seu chefe, porque isso sim é que é real.
Alô! Sr. Huguet, como vai? Infelizmente hoje não poderei ir, é que
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