ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

EU, EU MESMA E PARTE DE UM OUTRO EU

ÁGUA NEGRA °° quem somos nós?

Ian, meu futuro patrão, perguntou se tinha gostado de seus filhos adotivos. “Sempre dóceis aos meus ensinamentos”, disse rebolante. Respondi que sim com um sorriso entreaberto sem graça, denunciando a surpresa. Talvez, em uma tentativa de se redimir, Ian me mostrou seus outros hóspedes, a dispensa da casa: gansos robustos com laivos de um azul meio metálico do céu, porquinhos da Índia que gritavam como tenores quando ameaçados, hamsters astutos que formavam pirâmides um montando no outro para iludir os jacarés, pintinhos punks coloridos, galinhas bojudas na ânsia de voar. Era a comida mais animada que já vi. Como se passassem a eternidade anestesiados pela gula tornando-se adiposos e deliciosos. E por não estarem distraídos, eram devorados. Que morte mal resolvida, “Será que doía?”. Meu assombro foi perceptível, como consolo, Ian disse que eles não sentiam dor. Acabei me acostumando, o segredo foi não criar vínculos com os moradores, fingia que nem moravam ali e tampouco assistia ao episódio sangrento. Sabia, mas me encobria de não saber, melhor assim. 

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