ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

casa de cera

Entregava-se a seus pensamentos sentado no sofá de mogno no meio da sala. Na vitrola ouvia Ella Fitzgerald em seus momentos mais clássicos. Certa energia mística transbordava daquele sofá no meio da sala. A melodia sublime e ancestral beijava-lhe os ouvidos, que se mantinham atentos sem perder um acorde sequer.
O cotoco de vela em cima da redonda estante iluminava precariamente toda a casa.
Era madrugada... o vento uivava como uma pessoa que parecia querer falar qualquer coisa.
Fazia dias não saia de casa, tornara-se seu próprio prisioneiro. Nem sabia mais como seria pisar na rua e encarar as pessoas. No fundo nunca gostou de ninguém, preferia a solidão, é bem melhor para a saúde do espírito. Quando ficamos dependentes, nosso corpo não caminha na santa paz do paraíso.
A lembrança mais próxima de ter visto uma alma viva... um acontecimento imenso, que se passava despercebido, era como se a terra tivesse parado, ou melhor, todos eram meras estátuas, somente ele podia
Seu companheiro acordou muitíssimo cedo, algo fora do comum, já começa por aí (quem?). Estava uma chuva e tanto, a água caia impune desbravando diferentes caminhos. No início, os moradores tentavam abster-se das ações de um dia normal, mas depois tudo ficou incontrolável, ninguém queria mais ser
A chuvarada proporcionava um desanimo estarrecedor. Todos deixavam de ser humanos, de nervos estalados, sofriam processo de plastificação, os corpos assumiam uma capa externa e quando vistos simulavam bonecos de cera. No trânsito, no navio, nas feiras, no shopping e principalmente nas ruas. Via pessoas apáticas, inexpressivas, estranhas, indefesas... gotículas gotejavam imunes das abas dos chapéus e dos cabelos volumosos de laquê... ninguém se comovia, nem ele, que nunca mais saiu para saber se alguma coisa tinha mudado, se uma frestinha de luz quente havia iluminado aquelas almas inanimadas. Somente o cotoco, o sofá e a redonda estante era o que restava, mais ainda o cotoco, caso contrário, não teria descrito isso.

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