Carranca era o mais horripilante pirata de todos os mares.
Também era o mais feio, o mais mal-humorado, o mais briguento, o mais egoísta e mais; mais tudo de ruim que tiver no mundo inteiro.
O pirata de todos os mares não tinha amigos, tampouco uma tripulação para comandar em seu caveirento navio.
Viajava sozinho com uma perna de pau falante que fora amaldiçoada, há muitos anos atrás, pela Feiticeira Ecritela, conhecida como nariz de tomada.
A tagarela perna já tinha ganho vida própria.
Tinha até nome, chamava-se Nenhumpio.
Era tão independente, que nem parecia fazer parte do corpo de Carranca.
Um belo dia, navegando para a imensidão do sem fim, Nenhumpio avistou uma cristalina garrafa boiando.
– CARRRRAAANCA! GARRAFA À VISTAAAA! – gritou a perna bamboleando.
– Controle-se criatura!! – respondeu trocando o rumo da embarcação.
Seguiram em direção a garrafa.
Chegando bem perto dela, o pirata de todos os mares jogou uma rede para pescá-la.
– O que é? O que é? O que é? – desesperava-se a perninha.
– Quer parar com isso?!
– Foi você quem começou! Para que tanto mistério? – queixou-se a perninha impaciente.
– Não seja tolo, seu pedaço de pau insuportável! – e argumentou nervoso. – O dono pode estar por perto, precisamos nos disfarçar.
Carranca vestiu um fabuloso cocar multicolorido para o caso de passar algum navio.
Pronto! Estava pronto.
Agora era impossível que desconfiassem de alguma coisa.
Abriu a garrafa, cuidadosamente, para não danificar o envelhecido papel que estava dentro dela; quase um pergaminho.
No pergaminho tinham uns escritos estranhíssimos, talvez até de um povoado ainda não descoberto.
Mas, no meio daquele bololo de letras minúsculas, o pirata de todos os mares descobriu um X vermelho levemente apagado.
– UM TESOURO!
– xiiiiiii!
Nenhumpio engoliu a empolgação.
A viagem em busca do tesouro começou imediatamente.
Navegavam navegavam navegavam... durante dias e noites.
Nunca fizeram uma viagem tão grande em busca de um tesouro.
“Deve ser enorme”, pensava o pirata todos os dias.
Chegaram a uma ilha deserta, muuuito distante.
Lá, da praia, contaram trinta e três passos, dezessete coqueiros, duas palmeiras imperiais, cinco pitangueiras, dois macacos (que com passar do tempo já tinham um filhotinho), treze pedras arredondadas, um bambuzal verde e amarelo, uma poça d’água suja e...
– O TESOURO!
– Cale-se Nenhumpio! A floresta pode nos ouvir... – disse baixinho.
Carranca cavou, cavou e cavou de novo, até que... pá!pá!pá! a terra ficou dura como pedra. Tinham achado alguma coisa.
Então o pirata de todos os mares retirou do buraco um enorme baú.
“Bem como eu esperava”, pensou ele.
– Nouuussa! Estamos ricos mil vezes infinito!
Quando Carranca abriu o emperrado baú, tanto a contente perninha tagarela como ele próprio ficaram desapontados.
– Mas o que é isso?
– Parecem coisas de neném.
– Não sou cego Nenhumpio! Isso deve ser alguma brincadeira!
Carranca impaciente e com as mãos para traz começou a andar de um lado para o outro.
Enquanto isso, Nenhumpio analisava o tesouro, mas sem conseguir vê-lo direito, pois o pirata de todos os mares não parava quieto, e a perninha era um pouco míope, ainda mais, quando estava em movimento.
– Olha! Tem muita coisa de prata, a gente pode vender na cidade.
Carranca reparou que, pela primeira vez, Nenhumpio tinha razão. Agarrou o baú e começou a fazer o caminho de volta.
Passando pela poça d’água suja, pelo bambuzal, as pedras... chegando bem onde estava a família de macacos, cruzou com um senhor de uns setenta anos, que o parou e perguntou para ele sobre o baú.
– Achamos primeiro seu velhaco! Precipitou-se a perninha
– Continue marujo. – disse Carranca
– Meu bom homem, estou há setenta anos procurando este tesouro. Tem uma coisa nele que me pertence... somente uma coisa.
– Darei o que é seu de direito por uma condição.
– Senhor... é apenas o último pedido de um ancião.
– Como chegou aqui? Se nós estávamos com a garrafa?
– Vinha nadando do mar vermelho em busca dessa garrafa perdida. Foram tantos anos, muitíssimos anos..
Até que avistei uma luz cristalina refletindo na água. Percebi eufórico! Mas vocês foram mais rápidos do que eu.
Carranca e Nenhumpio fitaram os pés do velho e perceberam que ele tinha guelras enormes.
Com certeza tinha vindo nadando.
– Veja lá o que vai escolher! – aconselhou o temido pirata, largando o baú no chão.
O homem ajoelhou-se diante do baú e começou a jogar toda aquela quinquilharia para o alto.
Retirou do fundo do baú uma chupetinha transparente, de plástico.
– Obrigada! Ainda bem que vocês gritaram que a garrafa estava à vista, assim pude me aproximar do barco e ver...
– Veja seu paspalho! Fica gritando o que não deve. – dirigiu-se a Nenhumpio
– Se acalme seu pirata, não foi por isso que eu vim parar aqui, na verdade, foi só coincidência.
– Coincidência?
– Observe que eu cheguei pertinho da embarcação e vi voando lá de cima, até a água aonde estava, uma pena verde-alaranjada. Ocorreu-me na hora que deviam ser índios navegadores e que, com certeza, o tesouro estaria numa ilha tropical.
– E veio parar logo aqui? Nesta ilha, essa mesma ilha, só esta, mais nenhuma?
– Vim seguindo o rastro de penas; ora bolas!
O cocar realmente havia chegado mais magro.
Carranca sentiu-se um idiota.
– Vá logo com isso!
O velho feliz da vida quis retribuir ao quase pirata; quase porque um pirata de verdade nunca daria, sem uma luta de espadas, parte de seu tesouro.
O velho retirou do bolso uma lustrosa moeda de ouro e deu para Carranca.
Depois o velho correu para o mar, mergulhou fundo e sumiu para sempre.
O pirata de todos os mares, pela primeira vez, parou para pensar...
Pensou que não se lembrava de ter tido uma chupeta quando criança.
Seus olhos se encheram d’água; fitou Nenhumpio que já chorava silenciosamente.
Olharam-se com ternura.
– Nenhumpio, você é o único que me apóia.
– Também te amo. – desabafou a perninha, já fazendo uma poçinha no chão.
Foram embora tão felizes, mais tão felizes, que até esqueceram o tesouro.
Por outro lado, a moeda de ouro...
enfiaram no bolso da casaca.