ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

domingo, 15 de agosto de 2010

folhinha de veludo roxo

mas não tive culpaaa!
não quero saber. Onde já se viu rabiscar o muro do prédio com um monte de folhas? Seu Jeremias trouxe o balde. Tem uma bucha aí?
Sim senhora, disse o porteiro.
Então entregue a bucha a ela, ela vai limpar tudinho...
Não vou não! Diz pra ela seu Jeremias, o senhor viu que eu não fiz sozinha... eu nem sabia que essa folhinha de veludo roxo pichava muros...
Aiii! A velha puxou minha orelha igual a geleca puxa-puxa.
Não tive escolha, fiquei esfregando aquele muro cheio de corações, nomes, bundas e pirus. Aqueles garotos imbecis, sem-vergonhas, todos saíram correndo, muito espertos, até a Cadinha me deixou.
Descobri o quanto ele era enorme, quilômetros e quilômetros da pior vergonha da minha vida. Enquanto esfregava a bucha triste percebi que minha avó se juntava a mim. Senti um gosto bom na boca.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

nano sinfônia

a vida às vezes cai como um piano sobre minha cabeça (by Biza Madruga)
cruzess, que horror
você acha isso mórbido?
pois é claro!
ah é!? então me diz quantas pessoas você conhece que morreram de piano na cabeça?
traga-me um levantamento eficaz de pianos homicidas... e podem ser suicidas também, no mundo das grandes janelas, nunca se sabe.

parascavedecatriafobia



por que fez isso?

porque prometi a ele

como assim? você prometeu a você mesma

eu sei. mas disse a ele que só ficaríamos de novo numa noite de sexta-feira treze.

tem várias, isso é desculpa

tinha que acontecer uma coisa bizarra

e aconteceu?

sim

o que?

eu não lembro, só sinto

domingo, 1 de agosto de 2010

Miltinho Cabeçudo


Miltinho Cabeçudo, Zé a Jato, Criolo, Neném e Romualdo são sambistas, fazem sempre shows na escadaria Selarón. É sempre um sucesso, ficam várias pessoas espalhadas pelos degraus da escadaria, ambulantes vendendo bebidas e crianças correndo. Os músicos vestem terno de linho branco sem camisa e cartola branca, figurino usado diariamente por Miltinho Cabeçudo.
Os malandros da Lapa sempre se reuniam para fumar um na escadaria. "Malandro que é malandro não dá mole pra ninguém!" "Malandro é o gato que já nasceu de bigode!" Não é fácil ser malandro, tem-se uma reputação a zelar...
Miltinho Cabeçudo, de terno branco sem camisa e cartola branca, estava em pé contando uma história a Zé a Jato, Criolo, Neném e Romualdo sentados na escada prestando atenção enquanto rodavam um cigarro de maconha. Todos entorpecidos, rindo até da sombra.
"Não é fácil ser malandro!" Miltinho Cabeçudo sabia muito bem disso, até porque sua cabeça de cima era bem pequena e a razão do apelido, ninguém sabia mesmo ao certo. Ostentava um enorme sorriso de laçarote, os dentes brancos não-humanos do negão tiziu prediziam sua fama.
Um dia estava chapadão, viajando numa relax... numa tranquila... numa boa. Quis comprar um salgado no bar do argentino bola-rasteira. Colocou a mão na barriga e começou a descer os degraus. Romualdo perguntou: "ôôÔÔôôô... tu vai onde? Miltinho rodou nos calcanhares e mandou um beijo ao responder: "Vou pro beleleu!" (gargalhando). Finalmente se desvencilhou da rapaziada e do ritual diário. Caminhando acenou para todos na rua. Passou por bêbados, crianças jogando bolas, evangélicos, prostitutas, a tia baiana do acarajé, hippies sentados sob os arcos, cruzou toda a fauna marginal da Lapa. No fim da rua, quase em frente ao bar do argentino, Manaka, um mendigo negro de dread até o joelho e olho amarelo, apontou para Miltinho Cabeçudo, que assustado cruzou os braços como se quisesse manter o corpo fechado.

Chegou ao bar, um bar bastante antigo, com azulejos coloridos e mesas de ferro. Miltinho entra tonto e cambaleante. Os ruídos do bar ficam muito altos. Ele anda como um bêbado e por cada mesa que passa, ouve nitidamente a conversa das pessoas sentadas. Na primeira mesa, três velhos conversam.

HILDEBRANDO
Quer dizer que acredita em algo que nunca foi criado? Essencial?

BENEDITO
Por que não? Para você tudo se explica com Adão e Eva, o imbecil? E a adaptação? E os branquelos, amarelos, negros azuis, avermelhados? E os albinos da Antártica?

JOÃO (GARGALHANDO)
O quê? Os albinos vivem em iglus? Se mata seu velho de merda!

Na segunda mesa, dois casais conversam.

LIA
Ela adorava flertar com a morte! Ela adorava flertar com a morte!

RODRIGO
Dizem que falava sozinha e levava um cachorro invisível para passear.

CAIO
Coitada... será que matou o cachorro também?

MARI
Não! Eu soube de uma amiga plantonista que certa vez ela foi parar no hospital com o cachorro agarrado na buceta.

LIA
AH! Merecia morrer mesmo!

Na última mesa, seis homens conversam.

FERREIRA
Gostosa pra caralho, maluco!

FRANCISCO
Agora que comeu é gostosa? Haha caô!

Os homens zombam de Ferreira.

FERREIRA
Qual é o cambada? Assim com esse ciúme de vocês de mim, eu fico pra morre!

CORO DOS HOMENS
PRA MORRE! PRA MORRE!

No balcão, Miltinho olha para dois homens bêbados que estão apoiados. Atrás do balcão está o dono, um argentino ensebado, que fala coisas ininteligíveis aos bêbados. Miltinho bate no balcão ainda vertiginoso. "Ai ôôôôô... fela... me dá um... me dá um... me dá um... crocrete de carne" Um dos bêbados retrocou: " Crocrete de carne... ? Crocrete de carne... ? O negócio baum é coxinha de galinha, de galinha uh! mérmão... crocrete de carne é coisa de viadinho."
Miltinho não responde e morde o lábios, pega o croquete da mão do argentino que está atrás do balcão e o enfia inteiro na boca. Começa a falar cuspindo na cara do bêbado, que nem se abala, até acha graça. Comeu o salgado em duas mordidas ou menos.
Na hora de puxar o dinheiro, não conseguia se entender com o bolso da bermuda jeans esgarçada "Porra mérmão! Caralhooo!" Em meio a luta bermudística discutia consigo mesmo. Se contorcendo como se dançasse uma dança esquisita extremamente vanguardista. Risos brotam ao fundo.
Finalmente conseguiu, pagou e limpou a boca num só movimento, tudo isso para mostrar serviço.
Percebeu um monte de vagabundo se escangalhando de rir, "essa cambada tá rindo de mim?" quando olhou para o guardanapo que segurava, viu uma nota de dois reais toda engordurada, "puta ne merda!" E o argentino bola-rasteira reclamando com o guardanapo na mão, "no puede pagar con la servilleta, boludo". Cabeçudo puxou o canivete e meteu no pescoço do maluco "tu tá doidão de linguiça, mérmão?" Explosão de pernas cabeças sapatos azulejos garrafas e cadeiras... não dava para entender direito quem era o que. Miltinho some na confusão.
Da porta do bar, mulheres saem gritando e dois velhos agachados. Miltinho aparece na porta cambaleando e caminha até o mendigo de olhos amarelos que está do outro lado da rua. Cai de bruços aos pés do mendigo com um osso de galinha cravado nas costas.
Zé a Jato, Crioulo, Neném e Romualdo continuam fazendo seus shows e nesse, em especial, homenageiam Miltinho Cabeçudo, malandro dos malandros, cara foda pra caralho. Zé a Jato conta a morte fatídica de Cabeçudo para a platéia. Uma voz rebenta do meio da multidão: " Cê nem tava lá, como tu sabe dessas paradas toda ai?" E Zé a Jato responde: "Manaka tava. Ele é o sábio mendigo negro, o cara vê tudo. Ele foi salva a alma do camarada. Ajudou o irmão a fazê o caminho pro mundo regado. Não é não?" A banda e a maioria da platéia concordam. Ouve-se num crescente uma gargalhada estridentemente assustadora. Todos olham acompanhados por uma brisa estranha... é Manaka sentado no seu canto.


Miltinho Cabeçudo era malandro de chapéu
Andava pela Lapa
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu

Não sabe brinca não brinca
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu

pagou com guardanapo
limpou a boca com os merreu
tava doidão de memel
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu

Não sabe brinca não brinca
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu
(sambinha em homenagem a Cabeçudo)