"Não é fácil ser malandro!" Miltinho Cabeçudo sabia muito bem disso, até porque sua cabeça de cima era bem pequena e a razão do apelido, ninguém sabia mesmo ao certo. Ostentava um enorme sorriso de laçarote, os dentes brancos não-humanos do negão tiziu prediziam sua fama.
Um dia estava chapadão, viajando numa relax... numa tranquila... numa boa. Quis comprar um salgado no bar do argentino bola-rasteira. Colocou a mão na barriga e começou a descer os degraus. Romualdo perguntou: "ôôÔÔôôô... tu vai onde? Miltinho rodou nos calcanhares e mandou um beijo ao responder: "Vou pro beleleu!" (gargalhando). Finalmente se desvencilhou da rapaziada e do ritual diário. Caminhando acenou para todos na rua. Passou por bêbados, crianças jogando bolas, evangélicos, prostitutas, a tia baiana do acarajé, hippies sentados sob os arcos, cruzou toda a fauna marginal da Lapa. No fim da rua, quase em frente ao bar do argentino, Manaka, um mendigo negro de dread até o joelho e olho amarelo, apontou para Miltinho Cabeçudo, que assustado cruzou os braços como se quisesse manter o corpo fechado.
Chegou ao bar, um bar bastante antigo, com azulejos coloridos e mesas de ferro. Miltinho entra tonto e cambaleante. Os ruídos do bar ficam muito altos. Ele anda como um bêbado e por cada mesa que passa, ouve nitidamente a conversa das pessoas sentadas. Na primeira mesa, três velhos conversam.
HILDEBRANDO
Quer dizer que acredita em algo que nunca foi criado? Essencial?
BENEDITO
Por que não? Para você tudo se explica com Adão e Eva, o imbecil? E a adaptação? E os branquelos, amarelos, negros azuis, avermelhados? E os albinos da Antártica?
JOÃO (GARGALHANDO)
O quê? Os albinos vivem em iglus? Se mata seu velho de merda!
Na segunda mesa, dois casais conversam.
LIA
Ela adorava flertar com a morte! Ela adorava flertar com a morte!
RODRIGO
Dizem que falava sozinha e levava um cachorro invisível para passear.
CAIO
Coitada... será que matou o cachorro também?
MARI
Não! Eu soube de uma amiga plantonista que certa vez ela foi parar no hospital com o cachorro agarrado na buceta.
LIA
AH! Merecia morrer mesmo!
Na última mesa, seis homens conversam.
FERREIRA
Gostosa pra caralho, maluco!
FRANCISCO
Agora que comeu é gostosa? Haha caô!
Os homens zombam de Ferreira.
FERREIRA
Qual é o cambada? Assim com esse ciúme de vocês de mim, eu fico pra morre!
CORO DOS HOMENS
PRA MORRE! PRA MORRE!
No balcão, Miltinho olha para dois homens bêbados que estão apoiados. Atrás do balcão está o dono, um argentino ensebado, que fala coisas ininteligíveis aos bêbados. Miltinho bate no balcão ainda vertiginoso. "Ai ôôôôô... fela... me dá um... me dá um... me dá um... crocrete de carne" Um dos bêbados retrocou: " Crocrete de carne... ? Crocrete de carne... ? O negócio baum é coxinha de galinha, de galinha uh! mérmão... crocrete de carne é coisa de viadinho."
Miltinho não responde e morde o lábios, pega o croquete da mão do argentino que está atrás do balcão e o enfia inteiro na boca. Começa a falar cuspindo na cara do bêbado, que nem se abala, até acha graça. Comeu o salgado em duas mordidas ou menos.
Na hora de puxar o dinheiro, não conseguia se entender com o bolso da bermuda jeans esgarçada "Porra mérmão! Caralhooo!" Em meio a luta bermudística discutia consigo mesmo. Se contorcendo como se dançasse uma dança esquisita extremamente vanguardista. Risos brotam ao fundo.
Finalmente conseguiu, pagou e limpou a boca num só movimento, tudo isso para mostrar serviço.
Percebeu um monte de vagabundo se escangalhando de rir, "essa cambada tá rindo de mim?" quando olhou para o guardanapo que segurava, viu uma nota de dois reais toda engordurada, "puta ne merda!" E o argentino bola-rasteira reclamando com o guardanapo na mão, "no puede pagar con la servilleta, boludo". Cabeçudo puxou o canivete e meteu no pescoço do maluco "tu tá doidão de linguiça, mérmão?" Explosão de pernas cabeças sapatos azulejos garrafas e cadeiras... não dava para entender direito quem era o que. Miltinho some na confusão.
Da porta do bar, mulheres saem gritando e dois velhos agachados. Miltinho aparece na porta cambaleando e caminha até o mendigo de olhos amarelos que está do outro lado da rua. Cai de bruços aos pés do mendigo com um osso de galinha cravado nas costas.
Zé a Jato, Crioulo, Neném e Romualdo continuam fazendo seus shows e nesse, em especial, homenageiam Miltinho Cabeçudo, malandro dos malandros, cara foda pra caralho. Zé a Jato conta a morte fatídica de Cabeçudo para a platéia. Uma voz rebenta do meio da multidão: " Cê nem tava lá, como tu sabe dessas paradas toda ai?" E Zé a Jato responde: "Manaka tava. Ele é o sábio mendigo negro, o cara vê tudo. Ele foi salva a alma do camarada. Ajudou o irmão a fazê o caminho pro mundo regado. Não é não?" A banda e a maioria da platéia concordam. Ouve-se num crescente uma gargalhada estridentemente assustadora. Todos olham acompanhados por uma brisa estranha... é Manaka sentado no seu canto.
Miltinho Cabeçudo era malandro de chapéu
Andava pela Lapa
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu
Não sabe brinca não brinca
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu
pagou com guardanapo
limpou a boca com os merreu
tava doidão de memel
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu
Não sabe brinca não brinca
Agora foi pro beleleu
Ele foi pro beleleu, ele foi pro beleleu
(sambinha em homenagem a Cabeçudo)