Ao acordar, visou tomar um banhinho para relaxar os ossos doloridos. Quando abriu o chuveiro, sentiu uma sensação demasiado estranha: “Será ressaca?”. Era como se a água fosse metálica e em vez de acalmar estava agredindo-o, pesada, de densidade pontuda, incomodava desesperadamente a cada poro de seu corpo desnudo. Na mesma hora fechou o chuveiro, enrolou-se na toalha rosa felpuda e foi até a pia que lhe causara tantos problemas – a fonte do líquido infernal – com o intuito de verificar o que se passava. Abriu com a mão tão decidida que o fluxo de água mais parecia uma chuva de granizo. Batendo na borda da pia e ricocheteando em seu rosto intrigado. Numa medida desesperada para curar a angústia, começou a abrir todas as torneiras e chuveiros da casa, cada girada de registro, cada abertura uma pontada mais aguda, fundo no peito. Parecia estar sendo perfurado por agulhas invisíveis de dimensão e material desconhecido. Árduo em meio ao surto tomou generosas gotas de um remédio para dor de cabeça. Engolia a todas de boca seca, extremo porque sua aversão a água impedia-lhe de ingerir o remédio dissolvido como estivera acostumado desde sempre. A situação desumana parecia fazê-lo ingressar em outro universo, inebriante, desprovido de leis físicas das quais estava imbuído. A torrente de água ensurdecedora, se pudesse falar, talvez fizesse um apelo: “PIEDADE!” O crânio encharcado latejava taciturno, murcho, impregnado por moléculas de água estranhas à sua conformação humana. Sentia um tipo de mutação desencadeada por dor inefável, e em intervalos estalados, esta se transmutava em mórbido prazer. A experiência arrebatadora acabou por fazê-lo desabar no chão como se entorpecido de alguma substância irreconhecível. Apagou durante horas, ou anos.
Sôfrego, quando acordou seus pensamentos apaziguaram-se, mas o desconforto permanecia e agora tinha origem externa. A epiderme parecia revestida por camada desigual nunca saboreada por ele. A sensação produzida pela fricção da nova pele proporcionava-lhe cócegas, deixando-o aturdido. Levantou-se subitamente, parecia estar pisando em plumas. Encarou uma bizarra figura no espelho, quase cuspiu seu coração translúcido do que houvera. A taquicardia avançava aos tímpanos: “CAMIILOO!!” Gritou feito louco alucinado criança quando perde o brinquedo preferido. Analisou ao redor e viu o chão forrado pelo tapete de penas incrustadas por água maligna que secara impune. Descobriu as torneiras jorrando penas, penas marcadas pelo sofrimento, pelo fluido da morte: “Tenha dó do meu penar!” Talvez pressentisse que só elas seriam capazes de destruí-lo, egoísta mostro de perversidades, nunca se perdoaria, entregava sua alma ao diabo fortemente, acertando-se ao vazio, no não-fazer-nada a passos lentos para a reles existência.
Domado pela melancolia, ninguém sabe ao certo quão intensamente aquele homem sonhador permaneceu ali, o semblante no momento estático, regido pelas lembranças, na esperança de acordar novamente e ver que tudo não passara de um sonho ruim. Apagar da memória uma quarta-feira de cinzas cuja brasa imaginária queimava suas ilusões até reduzi-las a um pó tenebroso.