Cristo na Coluna (1966); desenho em nanquim sobre papel.
Por Carybé
Ônibus
lotado. Subi hesitante na esperança de alguma sorte. O espaço central é confortavelzinho:
tem aquele vão do elevador para cadeirantes. Fiquei ali, desconectada do mundo. Lendo um
livro sobre a origem do Universo. O cientista explicava a estranheza desencadeada
pela perfeição do início das coisas – como se o universo tivesse sido
conscientemente projetado para permitir o surgimento da vida. Percebi a
potência do advérbio na supressão da realidade a que somos levados acreditar. O
enredamento da trama. Especulações: inúmeras teorias da imaginação científica
também o são. Imersa no livro, fui tomada de assalto com os gritos
descontrolados de um rapaz logo atrás de mim. Ruídos profundos borbulhavam do
nada. Extremos. Esgoelava-se agarrado ao ferro como se tentasse arrancar nos
dentes a suspensão do ônibus. O tom da voz sofrendo mudanças drásticas. Senti a
garganta um pouco seca, a boca entreaberta de pavor, assombro. Ele, o rapaz,
sofria de estranho mecanismo, espécie de transe: o corpo espasmódico, gargalhando
estridente, os dentes enormes pendiam das gengivas escurecidas. Tudo começou no
túnel em São Francisco. O rapaz franzino assumiu proporções inimagináveis,
aterradoras. O pânico tomou conta dos passageiros. Todos gritavam, assustados,
surpresos; desconfiados, corriam, encolhiam-se, tremiam, arrepiavam-se. Uns até
achavam graça. Ninguém era capaz de prever a natureza das sensações. O ônibus
parou. O motorista veio investigar. Chama
uma ambulância, sugeriu a mulher enquanto rolava a roleta. É coisa de demônio mesmo! Disse o
motorista analisando. Soou a corneta. Passageiros saíam descompensados.
Amontoavam-se para conseguir escapar da ameaça invisível. O que poderia ser? Um
garoto de uns 15, 16 anos, gritando e rindo faceiro? O bombardeio energético
quebrava sua estabilidade emocional. Em espasmos abstraia o concreto. Lapsos da
personalidade eram percebidos. Sintomas da possessão? Subitamente, depois de
aberta clareira no corredor, braços fortes envolveram a entidade. As veias do
negro esturricavam. Entoava cânticos de alento para libertar o hospedeiro. Exú, dizia pulsante. Um odor
insuportável infestava o ônibus. O motor retomou as engrenagens. O ônibus
balançava na Avenida. O som metálico produzido pelas ferragens atormentava os
ouvidos. A estranha sinfonia acrescentava volume ao exorcismo. Pessoas em círculo
estenderam as mãos em reza, repetiam incessantemente uma mesma frase. Não posso
lembrar, estava fora de mim. Sensação de ausência, de peso, de temporalidade. Visão
panorâmica. O corredor do ônibus transportou-nos para uma espécie de limbo. A
brisa sobrenatural, a crença, palavras de luta; o desdém e o terror aos poucos
adormeceram a força que se apoderara do rapaz. Então arregalou olhos sanguíneos
de animal indefeso – travado no pescoço e na cintura pelo homem com o dobro de
seu tamanho. Olhei nos olhos agoniados; toquei no braço direito dele com a
minha mão esquerda. Vai ficar tudo bem.
Explosão de braços e pernas: o negão deu um tranco para trás; eu quase perdi a
estabilidade – meu livro voou. Apressei-me em resgatá-lo. Cuidado com suas coisas! Disse um cara, como se tudo fosse um show
para roubar míseros trocados dos passageiros. Não sabia em que acreditar; via e
sentia ignorante a qualquer indício de manifestação do imaginário popular. Um
sutilíssimo suspiro e o rapaz exausto, preciso
ir pra casa. O negão colocou o rapaz sentado num banco – envergonhado pelo
vácuo incerto do ocorrido. Piscava fortemente; uma ânsia de choro. A viagem aqui
é noite. O rosto receoso soprava vestígios de matéria morta. Na floresta negra
caminhava solitário. Os olhos revirados. No ponto seguinte, soltou como um
metal pesado; e cingiu vestes de cavaleiro do apocalipse.