ENXERGAVA TUDO PRETO, PONTILHADO COMO SE TIVESSE CAIDO EM UM APARELHO FORA DO AR, CHAPISCADO CALEIDOSCÓPIO NEGRO DE VERÃO. SENTADA NO BARCO CONTINUEI IMÓVEL DE CORPO, POR QUE A MENTE TINHA A VORAZ ÂNSIA DE ESCREVER QUALQUER COISA, QUALQUER LINHA ABSURDA, DESNUDA, AGUDA , FELPUDA, CASACUDA, LÍRICA, TESUDA, CARNUDA, DUVIDOSA, ASQUEROSA, SEI LÁ...

terça-feira, 18 de outubro de 2011

A Festa da Noiva Desdesposada

                                                                                                                                                                   

foto de Irina Ionesco 



Essa história foi uma velha que vende óculos na rua do Ouvidor que contou. Sabe a rua do Ouvidor? Fica no centro do Rio de Janeiro. Da barca que cruza a baía de Guanabara, você consegue pegá-la até o Saara. A velha fica numa dessas esquinas da vida, sentadinha com olhar perdido, como fosse uma cega, mas vende óculos.   
Disse que o ocorrido passou com a sobrinha da vizinha da encantador de cães da madame que era amiga e até meio-irmã da outra emergente, aquela que traiu o marido com o mágico que destratou o filhinho de um ano na festinha de aniversário, mágico grosso. Mas isso não vem ao causo. O importante aqui é a sobrinha. 
Era um casamento. A noiva estava se aprontando. Juntaram-se a ela várias mulheres; amigas irmãs tias primas mães avós enxeridas prestativas supersticiosas outras que ali passavam. Disputavam com unhas e dentes um pedacinho de noiva para enfeitar. Estavam nervosíssimas, verdadeiro pandemônio dentro da igreja . Como a velha mesmo disse: “ toda mulher guarda dentro de si o verme do desespero antes do casamento (alisava o ventre como se estivesse grávida)”.
Passado algum tempo, despontou dali a noiva... belíssima em seu olhar de noiva, o vestido de princesa, mangas bufantes, tules, rendas, transparência de sonho... o cabelo ornamentado de galhos e flores silvestres. Aaaaaaaaaaah! Primor de mãos amorosas. As mulheres suspiravam uma atrás da outra. 
A noiva inquieta. Sentia uma coceirinha sutil em diferentes pontos da cabeça, quentura, um estremecimento... “ai está coçando muito!”... "NÃÃÃÃO!"  Cada vez que a mão vacilante aproximava-se do penteado, as cabeleireiras, maquiadoras, massageadoras, animadoras, incentivadoras mulheres ficavam ensandecidas. Em coro: "Você não pode deixar o nervosismo estragar o seu dia. O dia."
A Tia avó falou: “coisinha é assim mesmo. Agora vai te dar de tudo. Dor de barriga, enxaqueca, de ombros, costas, virilha, queimação, tontura, pernas trêmulas e pálpebras ardentes. Mas não chora não, se não borra a maquiagem. Língua no céu da boca, vai... Eu sei como é isso. Já me casei seis vezes. Até hoje fico nervosa, uma loucura.”
Não escutava uma palavra! Como se em ínfimos intervalos de tempo lhe alfinetassem minúsculas agulhas agudas e quentes na cabeça. Em maresia apitava numa espécie de limbo. Alheia a qualquer psicologia da cerimônia. Começou a andar pesado, arrastando-se. Empurraram-na de soslaio no meio da igreja lotada. No tapete vermelho sangue ao som de violinos, violoncelos e vozes líricas, não haveria retorno. “Vai menina!” Sopraram ao fundo. Ela andava homeopaticamente penitente com uma ânsia inenarrável de arrancar tudo, penteado e roupa. Despir-se daquele desespero. Pungente e verdadeiro. Seria o prenúncio da dúvida? Não! Era corpóreo, visceral. Só ela o sentia, descontroladamente a vertigem tomava conta de seu corpo, a visão turva, pernas moles involuntárias...
Não! Amava aquele homem, tudo o que mais queria. Então o quê? Resgatou suas últimas forças e andou esbelta e alucinada todo o corredor de seu tormento e glória. Um passo após o outro, passo após... passo... entoava o mantra para conseguir vencer a estranha sensação. Por um momento desanuviou o espírito.... Logo o corpo enrijeceu desaliviado e só conseguia ver três imagens: o noivo, o padre e a cruz; noivo padre cruz, noivo padre cruz, noivo padre cruz... Quando finalmente chegou ao pé do altar, olhou para o noivo com olhos fundos de dor, olhou para o padre com olhos de clemência, olhou para a cruz... e caiu!
Foi um reboliço de parentes desconcertados e palpites intrometidos. “Ih! a noiva passou mal.” "E o casamento?" “Oba vamos direto pro birinight!” “Coitadinha! Tão jovem pra casar.”
Levaram a noiva para o hospital e no caminho, já estava morta. A festa da noiva morta, menina amante morta! A morte nada prematura foi descoberta no hospital. Primeiro, começaram a despir a noiva. O vestido de infinitos botões um a um, anágua, meia, sinta, nada.... A desfazer o penteado de galhos tortuosos e flores morta-vivas. O cabelo ia desfazendo-se lentamente... e com mechas pesadas a laquê... caiam lacraias gigantescas. Sete lacraias grotescas e insaciáveis dilacerando o couro cabeludo da noiva. As peçonhentas escorregavam pelo rosto. Agitadas pela luz fluorescente cavucavam furos profundos na pele. Proliferando em ninhos umidamente complexos na cabeça de madeira podre.
Escatológico e o verme do desespero antes do casamento cresceu ainda mais e as mulheres...
 É medo de lacraia



terça-feira, 4 de outubro de 2011

Os Aspones

Você viu aquele seriado, os aspones? Com Selton Melo.
Sei. Repartição pública
Olha... igualzinho! Era na rua da ajuda, uma ruinha no centro perto do castelo. O prédio meio velho, mal cuidado. Fui pegar o elevador. Quando entrei, a maquinista sei lá, era uma anã. Não por isso, mas estava naquela cadeira gigante com os pezinhos balançantes. Eu disse: décimo quarto, por favor. Ela apertou vários andares. O elevador subia até o dezessete. Mas lá pelo quinto andar, nossa primeira parada, saiu gente e tinha um senhor parado à porta. Ele perguntou: desce? Ela disse que sim. Nos entreolhamos estranhamente e seguimos. No oitavo, outros passageiros desceram e quando duas senhoras perguntaram: desce? a mulherzinha disse sim. No décimo, a torcida para baixo era bem maior e quando um senhor entrou perguntando se descia, as portas fecharam e o elevador começou a descer. Não sei porque aquilo me deu um acesso de riso que abafei com a mão sobre a boca. Eramos quatro sem conseguir alcançar o destino. Uma mulher meio alterada (nessas horas sempre tem um transbordamento) disse: oh! minha filha, o elevador estava subindo, eu tenho hora, não posso ficar passeando não. Achei mais engraçado ainda e saiu um esparro fugitivo tipo um sopro mal direcionado, a mulher me olhou com olhos fuzilantes. Lá pelas tantas, o elevador retomou a subida. Pensei se um dia ele voltaria ao chão, talvez não, porque na concepção daquela maquinista ele sobe e desce para sempre nesse movimento, nunca para. Acho que na concepção dos maquinistas do mundo inteiro é assim, a caixa de metal sobe e desce, nunca para, é a maneira mais próxima de iludir alguém ao céu. Teve até um momento que o elevador parou, não recordo em que andar, ela com a cabeça inclinada perguntou: desce ou sobe? Por ela, seria capaz de atender a todos os desígnios de caminhos traçados a um só tempo; do sobe e desce...
No andar, um corredor distante tomado por um roda meio de madeira maciça. Andei andei andei até alguém se compadecer: aonde vai? Para FDGR, não não, ABYG... (uma daquelas siglas esquisitas, que quiça não quer dizer nada ao certo). Entrei na sala, pessoas taciturnas comendo bolachas mareadas pelo som do ventilador de teto, artigo pré-histórico que compunha bem o lugar de nevoa sebosa. Pilhas de papel amarelado formavam pilastras gigantescas, alicerces na iminência de uma catástrofe nada prematura. Fiquei em pé algum tempo olhando invisível, nada interferiria na perfeita conformação daquela cena, entidades de cera cristalizadas pela matéria insolúvel do dia-a-dia. Questionaram-se entre si, quem é essa aí? Eu disse, sou estagiária, preciso de uma assinatura do Sr. Chefe de vocês. Questionaram-se entre si: quem é Sr. Chefe? Não sei, pode ser aquele que fica na sala ao lado. Ah é! Então vai lá. Vou não, ele é muito ignorante, vai você. Entrei na conversa: eu posso ir? Não! Nem pensar (suou uma gargalhada sarcástica da mais gordinha que mordia o canudo do guaravita fazendo transbordar gotículas na papelada deitada à mesa). Uma delas foi. Na verdade, suspeitei se nem ao menos chegou a ir. Foi tudo tão rápido, ela saiu pela porta e voltou. Como se tivesse parado o tempo, como se tudo no momento lhe pertencesse, o tempo estava a seu lado, tamanha a sutileza da parada imperceptível, quase espectral. Chegou e disse: deixe seu papel aí, ele está em reunião, depois assina. Olhei desconcertada aquelas pilastras de papel pensando se um dia, quando estiver bem velhinha, com os ossos fracos e as articulações perdendo a esperança, eu reencontraria aquele documento envelhecido, puído, sensível ao toque. Alguém diria ao tentar lê-lo com a pinça antes que desintegrasse em micropartículas brilhantes empoeirando a sala e atiçando alergias adormecidas, que ficou anos exposto ao sol ou mergulhado em limonada suíça ou até casado com um grilo não mais cantante na gaveta. Imaginei uma senhora distinta, porém carcumida pela culpa de saber a verdade, nunca recuperaria aquele papel, aquele maldito papel assombraria sua vida eternamente, fazendo-a mergulhar numa rede diabólica. Mal registraria o fato do serviço público ser assim mesmo; todo dia infinitos papéis perdem-se na vastidão de um universo com realidade desconhecida, incompreensível. Viveria peregrina esperando encontrar um novo sentido para sua fútil passagem pela existência, teria certeza, se tivesse recuperado aquele papel tudo seria diferente, obedeceria as exigências de si mesma, de alguém que vai e faz, capaz de conseguir uma assinatura, uma simples e ridícula assinatura, como pessoa, como cidadã, uma só assinatura, uma só uma e a burocracia vai...