lay lady lay por Daya Gibeli
Aquele menino estava lá, o menino estranho, que ouvi dizer, disse que a praça era chata e sem vida. Aquele que vive pra cima e pra baixo de blusa vermelha e coturno, sempre com um vira-latinha cinza escuro.
Cachorro interessante... independente e cheio de si, parece entender da poesia da vida, da paciência que é boa de se ter diante do novo, das graças de experimentar a suspensão do pensamento... Os olhos do animal brilham indiferentes à descrença alheia, é esquálido, mas feliz. E todos os dias, pontualmente, observo o menino estranho correndo desconjuntado para o terreno baldio do outro lado da praça, o faz quase misterioso. Permaneço seco de curiosidade - pele e veias. Os passos largos do cachorro o fazem recuar velozmente quando chegam em um ponto no meio da escuridão. Repousam alguns minutos, imagino ser mais ou menos o mesmo lugar de toda noite. Fico pensando nisso antes de dormir, o pesadelo do breu, o que será? o quê?
Nas manhãs vou até o terreno baldio e tento procurar o que largaram na escuridão; invento, indago-me e quando olho o céu, lhe vejo me dizendo que estou um velho cheio de manias estranhas, tão estranhas como as do menino estranho. Então persisto ainda mais, abaixo, ajoelho no gramado, tento... depois, na hora de levantar, esse meu reumatismo quer me enferrujar, quase morro por dentro sofrendo a velhice de anos de sedentarismo e descaso de sair na rua. É! preferia contar as batidas do meu coração para ver se estava bem a cumprir as caminhadas repletas de sorrisinhos falsos que o doutor Garden recomendava que fizesse pela praça. "Doutor, antes só que mal parado."
As vezes vendo o menino e seu cachorro, me pergunto: "quando ficou assim, seu velho rabugento?" E não sei dizer, não me lembro, é que sou velho, solitário, tenho que pensar em tudo: a samambaia, o jornal, o ovo mexido, a novela, desarrumar e arrumar a cama, a samambaia, o jornal, o ovo mexido, a novela...
Ia muito à praça, aí desapeguei. Não vejo mais graça naquelas pessoas fingidas a animadinhas. Minha vida só acontece em casa. Melhor cuidar de mim, da minha saúde. Quando encontrar Josephina, tenho que estar bem para ela, tudo deve ser perfeito... espero isso há anos, não posso ficar percorrendo ruas à toa, minha missão é aguardar, a hora vai chegar.
Uma noite
Lá vai ele... o menino estranho que vive pra cima e pra baixo de blusa vermelha e coturno, sempre com um vira-latinha cinza escuro.
Eu vou eu vou eu vou,
lá fui eu, um velho patético lutando contra o reumatismo e a amargura de não ter o que fazer. Assombrado vi o cachorro fazendo xixi e o menino chorando com uma rosa azul na mão. Fiquei na penumbra vendo aquela estranha cena protagonizada pelo menino estranho e seu cachorro de olhos brilhantes... O menino abraçou fortemente o cachorro e ficou repetindo tristinho: "não vou te deixar foguetinho! "
Meus olhos também ficaram brilhantes de vontade de chorar. Não tem nada mais tocante que um menino estranho e seu cachorro...
Agora eu me lembro, eu gostava das pessoas, tinha muitos amigos e uma tarântula - a Crápulina...
tudo foi se esvaindo sorrateiramente...
depois que Josephina....
por quê?...
Fui chorando em bicas até o menino estranho que conversava com o cachorro, quando ele me viu ficou assustadiço e ameaçou correr, mas não correu, ficou parado me olhando e eu para ele. Permanecemos assim algum tempo, sem dizer nada, só olhando. Me reconheci naquele menino estranho, era como se estive olhando para mim mesmo, tive uma vaga lembrança daquela cena. Como eu era inocente. Como meus olhos eram limpos. Agora eu já era uma coisa diferente. Ajoelhei-me, pus as mãos em seus ombros (o cachorro latiu) e olhando nos seus olhos perguntei: "por que meu jovem?... por que todos os dias vêm aqui? o que fazem? pelo amor de Deus, eu preciso saber!"
O menino fica pensando, e aborrecido responde: " Foguetinho faz cocô e xixi!... E agora? o que será dele? minha mãe quer se mudar e não quer mais ele. Disse que está velho e não vai aguentar a viagem... Eu sei! Mas só porque ele é velho, eu não posso deixar ele aqui! Ele é meu melhor amigo... Mas também não quero que ele morra, vai ficar sozinho, vai morrer muito triste!
Engoli um cuspe amargo enquanto olhava nos olhos brilhantes do cachorro, então me reconheci nele, não tenho a menor dúvida de que sou ele também. Perguntei pressionando os lábios: "Posso ficar com ele? Sou um velho sozinho e gostaria de ter um melhor amigo."
O menino olhou para o cachorro parecendo com coração apertado e muito dolorido. "Você vai chamar ele de foquetinho? Ele só atende assim." Sim, respondi. "Então... (o menino vira-se para o cachorro) você hoje achou um novo melhor amigo, Foguetinho, ele vai brincar das suas brincadeiras, vocês têm quase a mesma idade, eu te dou pra ele, porque ele é um velho muito bom e feliz", falou arranhando a garganta.
O menino fica olhando para o cachorro e se afasta, dando passos largos para trás. Quando está um pouco longe ele assobia, achei que era para o cachorro, mas era para mim. "Olha, você tem que vir aqui todos os dias, 09:09 da noite para o foguetinho fazer as coisas dele. Se não vier ele não faz de jeito nenhum, foguetinho só consegue se aliviar aqui no jardim das rosas azuis"
E foi assim que entendi o brilho nos olhos do foguetinho, ele tinha todas as noites antes de dormir tudo que ele mais sonhava: fazer xixi-cocô nas rosas azuis que tanto estimava. E que passei a amar também... meus deus, como estou sentimental.